quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Dói-me Tudo

Os leitores incautos não sabem, mas passo a revelar mais um dos segredos médicos: o "dói-me tudo", e o seu valor semiológico para o profissional que atende o doente.
Na óptica do doente, o "dói-me tudo" é usado para ser levado a sério. Pois se uma dor no peito parece grave, uma dor de cabeça também, já para não falar em mialgias e/ou artralgias dispersas, porque não referir que se tem todas elas ao mesmo tempo para um atendimento mais atento àquilo que julga dever tratar-se de uma caso, assim descrito, como muito grave? Se a isso juntar uma pujante "falta de forças", uns "tremores" que nem pode e muita "falta de ar", o quadro é virtualmente patognomónico (que quer dizer: os sintomas definem por si só a Etiologia - ou causa - subjacente): trata-se seguramente de um indivíduo a precisar de ansiolíticos, e já nem precisa de ser auscultado, ou sequer, ouvido, a partir daí, e depois de emborcar generosa dose de benzodiazepinas, pode ser recambiado para o seu domicílio com total segurança para "utente" e médico assistente.
Simplista? Sim senhores, mas numa confusão comum a todas as Urgências deste país, duvido que a atitude geral varie significativamente desta que descrevi.
Pois é, meus senhores, muitos sintomas confundidos não chamam a atenção de nenhum médico. Desviam-na isso sim para a componente "psicossomática". O que é particularmente dramático quando o doente de facto tem algum problema, e apenas está a exagerar nos sintomas.
Nos casos mais caricatos, fica o médico exasperado com a patetice sindromática, e o doente ainda mais apelativo face à reacção inesperada. Afinal, está a contar que lhe dói tudo e o gajo a dizer que ele não tem nada? Que faria se apenas se queixasse do que realmente sente!?
Pois já agora, meus caros, e por outro lado, o doente mono-sintomático, quietinho e prostrado, chama muito mais a atenção. Assusta muito mais quem o vê. O fulano da febre "sem mais nada". O fulano do aperto no peito "esquisito", que nunca tinha sentido antes. O fulano que de repente transpirou muito, ou teve palpitações como nunca tinha sentido antes, e agora está "estranho". Aquele que "nem queria vir", e que acha que já deve "estar tudo bem"....
Ironias.
Por isso aconselho que façam um favor a vocês próprios, e dificultem a vida do vosso médico, queixando-se apenas e só daquilo que realmente sentem, tentando dar o peso certo à intensidade dos vossos sintomas.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Hipocrisias "Reumatológicas"

E porque não partilhar com a generalidade da população uma manobra micro-corporativista básica no seio da minha "profissão".
E esta é uma polémica, que se arrasta há vários anos, entre Internistas (especialistas em Medicina Interna, aqueles que estão encarregados dos diagnósticos no sentido lato, e no tratamento de praticamente todas as doenças em que não seja requerida diferenciação numa técnica - manual - muito específica; os Dr. House, no fundo) e Reumatologistas (sub-especialidade relativamente recente, fundada aliás exclusivamente por internistas, e que se dedica a patologia do foro ósteo-articular, inflamatória e outra).
A polémica andará em torno de quem tem legitimidade para tratar certo tipo de patologia. Estamos a falar sobretudo de poliartrite reumatóide e de espondilartropatias seronegativas, doenças com particular envolvência "articular", mas também de doenças iminentemente sistémicas, como as "conectivites", tais como o lúpus, a esclerodermia, o Sjogren, as vasculites, entre muitas outras.
Uns, os reumatologistas, dizem ser eles os que devem tratar disto tudo. Outros, os internistas, dizem que deve tratar quem sabe.
Em termos reais, a maioria destes doentes é actualmente seguida em consultas de doenças auto-imunes de internistas por este país fora. Até porque há relativamente poucos reumatologistas, e distribuídos de forma praticamente exclusiva no litoral.
Em termos reais, as doenças referidas são apenas parcialmente "articulares", e caracterizam-se por ter um envolvimento sistémico mais ou menos pronunciado, isto é, que envolve diversos órgãos e sistemas em simultâneo. E a especialidade "sistémica" é a Medicina Interna.
Por outro lado, esta patologia é essencialmente, por esta Europa fora, seguida por internistas, que aliás são parte integrante das comissões internacionais que devidem com que critérios se constituem cada um destes, em geral, complicados síndromas. Escusado será falar para quem é do meio, por exemplo, nos grupos de Barcelona, e na excelência dos franceses nesse campo, em Medicina Interna.
Quanto aos tratamentos, com indicações mais ou menos precisas, essa questão da indicação é o menor dos problemas, bastando saber aplicar uma "guideline", o que qualquer macaco ensinado sabe fazer. O follow-up das complicações, da doença e do seu tratamento, é que é difícil e de primordial importância. E multi-sistémica. Ou seja, do foro do internista. Ou de vários sub-especialistas, com o problema de tempo e de gasto em recursos que isso coloca, sem melhoria, antes pelo contrário, na qualidade da abordagem.
Falam ainda de estudos americanos, que mostram que o "reumatologista" de lá trata melhor os doentes que o "internista" de lá. Esquecem-se é que o "internista" de lá tem 3 anos de formação específica, ao contrário dos 5 que se praticam na Europa. E que o "reumatologista" de lá faz também estes 3 anos de "Medicina Interna", além de continuar de seguida uma formação específica (ao contrário de cá, em que só fazem 1 ano de Medicina Interna). Esquecem-se por último que a "Medicina Interna" de lá é um parente da nossa Medicina Geral e Familiar, mais do que da nossa Medicina Interna.
Daí que, na Europa, quem trata as doenças sistémicas são os internistas. E lá os reumatologistas, que por sinal são muito mais parecidos com os "nossos" internistas que com os "nossos" reumatologistas.
E pergunta o incauto e não-médico leitor porque raio é que existe subitamente esta "luta" pela "propriedade" de certos doentes da Medicina Interna por parte dos reumatologistas (que até há alguns anos atrás pareciam não ter esses complexos de pertença...)?
Eu atrevo-me a fazer a calúnia: "biológicos".
Os "biológicos" são tratamentos resultantes de engenharia molecular muito específicos, e estamos a falar mais concretamente em anti-TNF (anti-tumor necrosis factor) e em várias outras anti-citocinas (anti-CD20, etc...).
E os "biológicos" são caros, muito muito caros. Cada indicação para se tratar uma pessoa com eles, em Portugal, custa ao estado vários milhares de contos por ano. Por outras palavras, e para os ingénuos, a indústria farmacêutica está particularmente interessada em que esta indicação exista, e exista muito. E será generosa nos "incentivos", sobretudo se a coisa se puder decidir num meio com apenas algumas dezenas de pessoas envolvidas.
A acrescer a isto, convém concretizar que existem menos de uma centena de reumatologistas em Portugal inteiro, ou seja, muito menos do que o mínimo possível para se seguir e tratar todas as pessoas com este tipo de patologia que agora requerem.
E que quase todos os reumatologistas, para não dizer todos, estão em regime de não-exclusividade, e que a passagem do doente pela "privada" se pode tornar determinante para se colocar a "indicação" deste tipo de tratamentos, mas já estou provavelmente a exagerar nas presunções.
Claro que não melhora os níveis de desconfiança o facto dos reumatologistas, aliás, não quererem "seguir" os doentes "todos".
Já adivinharam os meus leitores mais malandrecos: pois é, querem seguir "apenas" os que têm (eventual) indicação para fazer "biológicos".
E agora adivinhem qual a especialidade (entre as duas) que atribui mais indicações destes tratamentos por doente? Hummmm... seria interessante saber (em concreto).
Em suma, esta guerra não tem nada a ver com doentes. Tem a ver com dinheiro. Os reumatologistas querem o monopólio da capacidade de prescrição deste tipo de tratamentos, que para já se estende também aos muitos internistas (muitos mais que eles, reumatologistas) que seguem doentes com patologia auto-imune desde sempre.
E não querem esse monopólio a bem de ninguém, excepto deles próprios, como se pode depreender pelo exposto acima.
Deviam ter vergonha.
E o público devia ter conhecimento. Fica aqui o testemunho.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Egopatia

Um não-problema, este suscitado em alguns blogues da praça....
O Sr. em causa, presença notada em Lisboa e arredores por razões estéticas, terá aparentemente encontrado solução para o seu problema no Reino Unido, onde um cirurgião se propõe operá-lo através de uma técnica inovadora e pouco sangrante.
Isso é particularmente relevante, já que o doente terá recusado soluções propostas cá no burgo com argumentos religiosos, nomeadamente o de não querer ser transfundido.
Ora então qual é o problema?
O maior julgo ter a ver com uma certa forma de ego ferido, por se tratar "lá fora" um doente "de cá". Pormenor ridículo, já que cá, como se vê, propôs-se solução que foi recusada. Por outro lado, os avanços tecnológicos são isso mesmo: avanços tecnológicos. Por definição não estão generalizados, e não devia envergonhar ninguém que por cá ainda não se efectuasse a técnica em causa. O que seria preocupante é se não houvesse estímulos ou meios para cá também se praticarem "avanços tecnológicos", ou pelo menos para aderir a evoluções consumadamente eficazes, mas isso é outra história....
Nesta moeda e olhando para a outra face, há ainda alguns patetas que julgam isto como um fiasco do SNS. Pelos motivos invocados, este caso resulta-lhes num mau exemplo.
Depois há a questão do financiamento. Deve o Estado financiar uma Intervenção deste tipo, extra-muros, só porque alguém não se quer sujeitar a uma (boa) alternativa existente entre nós? Entramos agora em conceitos Político-religiosos, e cada qual terá a sua opinião.
O que eu realmente gostava de saber é se, ao ser proposta em Portugal uma solução Cirúrgica potencialmente letal por exsanguinação, se deixou ao doente o direito de arriscar a sua vida nessa solução.
Se sim, não vejo mesmo qualquer problema nesta história toda.
Se não, discordo da atitude. Paternalista. Mas sobre isso já por cá se falou muito....

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Palavra de Bastonário

Pedro Nunes in TSF
Na semana em que se realizou a cimeira Europa – África, o Ministério da Saúde não quis deixar de se pôr conforme ao espírito do momento e resolveu implementar as há muito aguardadas SIV.
Trata-se para quem está menos familiarizado com siglas umas viaturas mascaradas de carros de emergência mas que ao contrário dos ditos não são tripuladas por um médico. Num recordar dos tempos de antanho e do famoso anúncio do “não vás... ...telefona”, também neste caso é pressuposto o médico ficar em terra, isto é, na base e, ao telefone, comandar no terreno as acções executadas por um enfermeiro. O curioso da questão é que esta ânsia de poupança se estendeu das ambulâncias aos helicópteros e também estes, anunciados com pompa para vários pontos do território, serão tripulados apenas pelo piloto e por um enfermeiro.
Nada, como é de calcular, me move contra os enfermeiros e o seu contributo importante para a Saúde. Por vezes irrito-me quando alguns, numa interpretação que julgam modernaça do que é a actualidade, se furtam à necessária colaboração e entreajuda, para cultivarem pseudo independências que a todos prejudicam. No caso presente nem disso se trata. O Ministério, na tradicional procura de poupar uns trocos e reconhecendo que a confusão que instalou nas urgências lhe está a sair cara, lembrou-se do provérbio tradicional de “quem não tem cão caça com o gato” e das palavras aos actos foi um pulinho.
O problema está em que para que a coisa funcione é necessário que haja enfermeiros que aceitem ver-se sozinhos perante casos complicados de emergência, e médicos que à distância de uma linha telefónica, sem contacto físico com o doente, aceitem dar instruções sobre o que fazer. É que numa sociedade organizada pedem-se responsabilidades pelas consequências dos actos e nesses momentos não chega dizer que o Ministro é que mandou.
No Paquistão, a Organização Mundial de Saúde conseguiu resultados notáveis instruindo taxistas em manobras de reanimação e suporte básico de vida. Numa sociedade em que as condições económicas não permitem um sistema organizado de emergência estas medidas fazem, por vezes, a diferença entre o viver e o morrer. Ter quem consiga transportar um ferido ou acometido de doença súbita em condições de poder respirar ou deter uma hemorragia grave é de primordial importância. Em Portugal muitos destes socorros básicos eram feitos por bombeiros e logo completados numa rede de pseudo urgências dos Centros de Saúde.
Encerrando-se os SAP e transformando urgências hospitalares em consultas abertas não vocacionadas para tratar doentes urgentes, criou-se, como a Ordem dos Médicos atempadamente alertou, uma situação de risco e distância em relação ao que ficou no terreno. Substituir a rede existente por veículos que têm de se deslocar longas distâncias já seria problemático mesmo que tal se traduzisse em fazer chegar rapidamente ao local um médico treinado em cuidados de emergência. Substituí-la por veículos terrestres ou aéreos sem recursos humanos adequados é uma aventura quando não mesmo um defraudar ilícito de direitos. O conforto político de basear tal reforma numa ausência de contestação garantida por acordos firmados com autarquias não desculpa nas suas consequências.
Ter conseguido fazê-lo não torna uma má medida numa boa medida, apenas demonstra que a decisão não radica na negligência mas efectivamente no dolo.
Afinal, como a Cimeira demonstrou, África não fica assim tão longe...

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Isto Sim, Chateia-Me!

De acordo com o Jornal de Negócios, o Governo não vai apresentar a lista de cargos de direcção da Administração Pública que não caem de cada vez que há mudanças no poder político. Ao contrário do anunciado em 2005, o Executivo de José Sócrates, decidiu que não vai alargar a lista dos responsáveis públicos que devem manter-se no cargo mesmo que o Governo mude. Na prática, isso significa que a maioria das chefias vai continuar a depender das alternâncias do poder político, comprometendo-se um dos objectivos traçados pelo Governo nos primeiros meses do seu mandato: a despolitização das chefias. Sendo este um dos principais entraves à estabilização e aperfeiçoamento de uma Administração Pública excessivamente comprometida em conluios e favores políticos estranhos à sua missão, é sintomática esta inflexão nas promessas do Governo. Na verdade a anunciada reforma da função pública começa a sobressair como uma mera acção de cosmética, com os serviços e funcionários a serem utilizados como bodes-expiatórios de incompetências e malfeitorias diversas, mas sem que haja uma efectiva vontade de mudança. A começar pela urgente clarificação da perniciosa promiscuidade entre cargos técnicos e cargos políticos. in Jornal de Negócios

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Recuerdos de um ORL do Norte

Carlos Barreira da Costa, médico Otorrinolaringologista da mui nobre e Invicta cidade do Porto, decidiu compilar no seu livro "A Medicina na Voz do Povo", com o inestimável contributo de muitos colegas de profissão, trinta anos de histórias, crenças e dizeres ouvidos durante o exercício desta peculiar forma de apostolado que é a prática da medicina. Algumas pérolas.... O diálogo com um paciente com patologia da boca, olhos, ouvidos, nariz e garganta é sempre um desafio para o clínico: -"Quando me assoo dou um traque pelo ouvido, e enquanto não puxar pelo corpo, suar, ou o caralho, o nariz não se destapa". Os "problemas da cabeça" são muito frequentes: -"Andei num Neurologista que disse que parti o penedo, o rochedo ou lá o que é...". -"Fui a um desses médicos que não consultam a gente, só falam pra nós". Os aparelhos genital e urinário são objecto de queixas sui generis: -"Venho aqui mostrar a parreca". -"A minha pardalona está a mudar de cor". -"Às vezes prega-se-me umas comichões nas barbatanas". -"Tenho esta comichão na perseguida porque o meu marido tem uma infecção na ponta da natureza". -"Fazem aqui o Papa Micau (Papanicolau)?" -"Quantos filhos teve?" - pergunta o médico. "Para a retrete foram quatro, senhor doutor, e à pia baptismal levei três". -"O Médico mandou-me lavar a montadeira logo de manhã". As dores da coluna e do aparelho muscular e esquelético são difíceis de suportar: -"O meu reumatismo é climático". -"Estou desconfiado que tenho uma hérnia de escala". O português bebe e fuma muito e desculpa-se com frequência: -"Fujo dos antibióticos por causa do estômago. Prefiro remédios caseiros, a aguardente queimada faz-me muito bem". -"Eu sou um fumador invertebrado". O aparelho digestivo origina sempre muitas queixas: -"Senhor Doutor a minha mulher tem umas almorródias que, com a sua licença, nem dá um peido". -"Tenho pedra na basílica". -"O meu marido está internado porque sangra pela via da frente e pinga pela via de trás". Os medicamentos e os seus efeitos prestam-se às maiores confusões: -"Ando a tomar o Esperma Canulado"- Espasmo Canulase -"Andei a tomar umas injecções de Esferovite" - Parenterovit -"Era um antibiótico perlim pim pim mas não me fez nada" - Piprilim -"Agora estou melhor, tomo o Bate Certo" - Betaserc -"Tomo o Sigerom e o Chico Bem" - Stugeron e Gincoben -"Tomei Sexovir" - Isovir -"Estava a ficar com os abéticos no sangue". -"Diz lá no papel que o medicamento podia dar muitas complicações e alienações". -"Ó Sra. Enfermeira, ele tem o cu como um véu. O líquido entra e nem actua". O que os doentes pensam do médico: -"Quando eu estou mal, os senhores são Deus, mas se me vejo de saúde acho-vos uns estapores". Em relação ao doente o humor deve sempre prevalecer sobre a sisudez e o distanciamento. Senão atentem neste "clássico": -"Ó Senhor Doutor, e eu posso tomar estes comprimidos com a menstruação? Ao que o médico responde: -"Claro que pode. Mas se os tomar com água é capaz de não ser pior ideia. Pelo menos sabe melhor."

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

A Experiência

A "Experiência" está agónica. E ainda bem. Na minha prática clínica, sempre que fui ouvindo evocar a "Experiência", foi quase sempre pelos piores motivos, para justificar actos obsoletos ou injustificáveis, ou para pôr termo a discussões à falta de melhor motivo. A "Experiência" é, assim a modos que, o resquício da Medicina Tradicional (que o meu amigo Choque Céptico bem retrata no post anterior...) a subsistir no organismo da Medicina Moderna, e científica. É um cancro, benigno, localizado e em vias de exérese. Vive sobretudo em pessoas desactualizadas, por isso sobretudo naqueles com uma certa maioridade cronológica. A "Experiência" surge quando não se conhecem as orientações actuais, e nos vemos confrontados com as "novidades". É aqui que surge a Experiência de cada qual. "Eu sempre fiz assim", e "com óptimos resultados". Eu "acho" que isto "não está suficientemente testado" para ser adoptado. "Eu (, que já tratei x casos desses,) sempre me dei bem desta maneira". Não interessa nada que exista evidência científica em contrário, a assinalar que outro procedimento é o mais correcto. E que essa evidência científica signifique geralmente muitas "Experiências", com a vantagem de haver limites nos viés de interpretação e uma cobertura muito mais acertiva de todo o âmbito daquilo que é testado. Ciência, no fundo. Versus a ambiguidade da opinião de cada um. Um dia ouvi um Professor dizer, e ouvi-o com prazer, que a opinião de peritos é, cientificamente falando, um nível de evidência C. Leia-se, pior que B e A. E não existe D.... E nem todos somos "peritos". Ou seja, venham os estudos randomizados contra placebo e duplamente cegos, e venham as guidelines com níveis de evidência. E morte à "Experiência", de uma vez por todas.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Medicina Tradicional

domingo, 11 de novembro de 2007

Legados

Fala-se pouco em Medicina, nos tempos que correm, no "Serviço Público".
O médico acorre ao Hospital quando há uma catástrofe?
O médico não regressa a casa porque tem um doente instável?
O médico sacrifica 24 horas da sua vida pessoal numa Urgência porque alguém adoeceu ou faltou?
Serviço Público? Não, é um benemérito. E é um benemérito porque já se interiorizou que, afinal, não passa de um Funcionário Público, mais que um Servidor do Público. Muito por culpa dos governantes sucessivos. Muito por culpa de invejas corporativas de vários sectores da sociedade actual.
E o que deveria ser natural e óbvio, naquele cuja profissão é ajudar o próximo na doença e no sofrimento, é afinal, e cada vez mais, um acto desempenhado por força de um contrato com uma entidade (que não o doente) dentro horário de trabalho, ou, se fora dele, por benevolência.
Mas os médicos também não têm culpa neste estado de coisas?
A saúde evoluiu muito nos últimos anos, e também por culpa dos médicos, mas não terá falhado algo?
Falhou. Falhou a cegueira para com a sociedade, que permitiu que se instituíssem vícios de incumprimento por parte de uns, em termos de horário e de desempenho. Que permitiu que o parasitismo de uns fosse tolerado pelos outros todos. Que permitiu uma promiscuidade com a indústria farmacêutica muito para além do aceitável por parte de alguns.
E uns, ou alguns, numa sociedade mediatizada, é tido como o todo.
E o todo é de facto culpado, pela incapacidade demonstrada em controlar alguns.
E é este o legado às gerações de médicos vindouras:
-Ser tido no seu todo como sendo representativo da parte;
-Ver o seu desempenho avaliado por quem não é médico (em contraponto à ausência de controlo e avaliação eficaz de antes);
-Ver limitada a flexibilidade de horário que se desejaria;
-Ver limitado o contributo que a Indústria Farmacêutica poderia dar em actividades realmente importantes para a formação pós-graduada;
-Ver comprometida a estabilidade contratual para com as diferentes entidades do estado (em contraponto aos dias de hoje, em que não se indentifica ou consegue punir os "parasitas" do sistema).
Há que olhar em primeiro lugar para o umbigo, e mais que uma fatalidade circunstancial, o que aí vem (e que já tem vindo, cada vez mais, ao longo dos anos) é também uma consequência de uma geração que falhou.
É um legado.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Consulta-Expresso

Face à óbvia possibilidade de se aumentarem os índices de produtividade (dos que agora não produzem), e às imensas potencialidades de optimização dos diferentes sistemas de prestação de cuidados de saúde, por vezes, surge o patético....
Como uma recomendação administrativa recente que me chegou aos ouvidos, e que faz constar:
-Devem as primeiras consultas (aquelas em que não se conhece o doente de lado nenhum...) durar um máximo de 20 minutos e as segundas (aquelas em que o mesmo já foi visto anteriormente) durar um máximo de 10 minutos.
Interessante, pensei, exige-se aquilo que, trabalhosamente, demoro cerca de 3 vezes mais a fazer. Inépcia? Vamos considerar higienicamente que sim, um pouco, mas mesmo convertendo-me num profissional virtuosi do cronómetro, não almejo, francamente, conseguir alcançar o dobro do tempo exigido, e julgo que com défice de qualidade.
Ou seja, ou não sei fazer as coisas como deve ser, ou é estapafúrdio o dever considerado.
Por isso pensei como havia de fazer à minha vida, para o caso de me ameaçarem com o despedimento em caso de incumprimento.
E então será mais ou menos assim (neste exemplo, uma segunda consulta):
-Sr. X ao gabinete 8!
-...
tic tac tic tac
-Bom dia Doutor!
-Bom dia, já vamos num minuto de consulta, faltam 9 como pode ver por este cronómetro, por isso passe para cá os exames depressa e diga quais são as suas novas queixas.
-Bem, agora tenho esta falta de ar, bzz, bzz, bzz...
tic tac tic tac
-(após leitura e registo dos exames) Então aquelas dores articulares de que se queixava, melhores?
-Sim, sim, mas apareceu esta falta de ar...
-Bem, isso da falta de ar é melhor falar ao seu médico de família, e se ele achar necessário, nos 10 minutos dele de consulta, então há de fazer um pedido para ser observado aqui. Mas está melhor das dores articulares, muito bem....
-Mas é que fico muito aflito, e tenho ainda esta dor no peito, será que não me podia investigar estas queixas?
-Posso, mas já vamos em 6 minutos de consulta e ainda não escrevi nada no processo da consulta, mas vá falando, vá falando...
-Bzz bzz bzz...
tic tac tic tac
Triiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiing!!!!
-Pronto, já está, então aquilo das dores articulares eram aparentemente apenas umas artroses, continue a medicação, e qualquer coisa, já sabe, é só pedir ao seu médico de família que o referencie a esta consulta.... (sorriso)
-Mas então e estas queixas que lhe estive a contar, o que acha?
-Bem, é como lhe disse, é como o seu médico de família entender... (sorriso mantido)
-Ah... pronto, está bem. Podia-me passar uma receita para os remédios?
-Sr Y ao gabinete 8! ... ah, meu amigo, isso devia ter pedido aí um par de minutos antes do final da consulta, agora já estamos no tempo do doente seguinte. Mas pronto, o seu médico de família....
(PS: numa próxima oportunidade, uma primeira consulta para exemplo.)

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Síndroma Gripal

Aqui vai então um pouco de Serviço Público. Síndroma gripal, ou "gripe", expressão vaga que designa um conjunto de sintomas inespecíficos cuja etiologia se atribui, à partida e por razões epidemiológicas, a um vírus. Influenza, ou outro. Trocado por miudos, é quando uma pessoa, nesta época do ano, inicia queixas de dores musculares difusas, dores de cabeça, pode estar mais ou menos febril, pode ter dores de garganta, e apresenta um mal-estar geral com cansaço e adinamia. Se pertence ao clube das dezenas de milhar de portugueses que vão partilhar estes sintomas a partir de agora, por favor, deixe-se estar em sua casa, descanse, compre Ben-U-Ron ou outro paracetamol qualquer (1g) e vá tomando ao sabor da temperatura (a partir dos 38ºC debaixo do braço, um máximo de 3 vezes por dia), adicione-lhe um anti-inflamatoriozinho não esteróide (por exemplo nimesulida 100mg de 12/12 horas) para espevitar ou andar simplesmente menos prostrado, e deixe passar o tempo.... Sobretudo: NÃO VÁ logo à Urgência mais próxima! Assim tivesse feito uma alma qualquer há uns dias atrás, e talvez eu não tivesse passado o fim-de-semana de molho (já estão agora a perceber a motivação do post...). Em caso de dúvida, ir ao médico assistente, de família. E não à Urgência. E a altura para ter dúvidas (e ir ao médico de família, e não à Urgência) é: -Surgimento de outros sintomas associados aos acima referidos: falta de ar, tosse com expectoração não branca, sintomas intoleráveis APESAR da medicação, vómitos. -Febre persistente (com duração superior a 3-5 dias) 99% dos leitores com gripe este ano, com esta "receita", vão passar um bocado (menos) mau, e rapidamente voltar ao activo (não existem tratamentos específicos, ou "antibióticos", para estas viroses; ou seja, "passam sozinhas"). O restante 1% deve ir ao médico de família (E NÃO à Urgência!). Se tiver mais de 65 anos, profissão exposta (eu sei, mas em casa de ferreiro...) ou doença crónica (sobretudo do foro cardíaco e pulmonar), aproveite e vacine-se. Mas lembre-se, acima de tudo: NÃO VÁ à Urgência do Hospital mais próximo.... PS: já agora, participe no registo Nacional em http://www.gripenet.pt/index.php

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Papeis Trocados

Aproximam-se eleições na Ordem dos Médicos (OM).
A confusão reinante no povo, que faz constar que esse organismo é uma arma corporativista dos médicos, tem razão de ser. E tem razão de ser porque até muitos, quiçã a maior parte, dos meus colegas também se prestam a este tipo de confusão.
E como em qualquer Democracia/órgão democraticamente eleito, as pessoas que votam não sabem necessariamente aquilo que fazem quando votam, levando a que se apresentem a votos pessoas que não correspondem necessariamente àquilo que delas se deveria esperar uma vez eleitas, subvertendo a razão de ser da existência da Entidade.
Por isso é que passamos a vida a dizer que se gasta demasiado em Saúde, elegendo gente de paleio musculado e sentido de responsabilidade plástica, que poupa em Saúde degradando ainda mais os Serviços, gerando ainda mais vozes revoltadas, e assim sucessivamente em círculo vicioso difícil de contrariar.
Reformar, é difícil. Assumir gastos para optimização dos recursos, dos gastos, do controlo de qualidade, é difícil. Muito mais no quadro de uma legislatura, até de duas.
Por isso não se faz. Por isso degrada-se a qualidade em nome da poupança de curto prazo, tanto mais facilmente quanto o sistema actual é tendencialmente gratuito para o utente e tendencialmente não lucrativo para empreendedores privados diversos, que só têm a ganhar com a mudança deste status quo....
Mas voltando à OM, dizia eu que muitos dos meus colegas queixam-se que, tratando-se do órgão representativo da saúde com maior visibilidade nos media, a OM não nos representar devidamente. Não acautelar devidamente os nossos interesses. Ser demasiado branda com o poder circunstancial, ter discurso mole e pouco perceptível.
Numa palavra, não defender a nossa qualidade de vida e a nossa imagem, em sentido lato. Profissionalmente, remuneratoriamente e socialmente.
Quando nós próprios pensamos assim, porque raio havemos de querer fazer crer a alguém que as opiniões emitidas pela OM são imparciais, e sempre com o intuito do bem maior para o doente?
Quando nós próprios somos incapazes de discenir entre o que deve ser um órgão regulador da qualidade da saúde e da Medicina que se exerce por cá, e um qualquer sindicato?
A OM deve controlar os médicos e a qualidade dos cuidados prestados, punir a má prática, denunciar os problemas.
Os nossos interesses devem ser acautelados noutro sítio.
Sob pena de prostituirmos este organismo, descredibilizando-o ainda mais.
Será difícil encontrar, repito, num sistema eleitoral em que os votantes são homens e mulheres com interesses particulares e algum viés de sentido das instituições, alguém que represente devidamente o papel pretendido.
Nas últimas eleições surpreendi-me, porém. Às vezes é assim, a fé nas pessoas, de tão pouca, dá lugar a momentos de êxtase à mínima réstea de engano. Pareceu-me ter vencido a lista menos populista e mais "séria", por assim dizer.
A opção era entre o actual bastonário e o Dr. Boquinhas (por esta altura certamente a gerir uma instituição de saúde qualquer por este país fora...).
Hoje a opção é entre a manutenção do discurso pausado e cuidado, e outro, muito mais populista, que apela ao voto naquele que "defenderá o interesse dos médicos". E não da Medicina.
Tenho alguma apreensão, pois.
Salvaguardando já agora que discordo de muitas das posições do actual bastonário, e desconheço, a bem dizer, a real motivação daquele que me parece ser o "candidato das feiras".
Ou seja, como é também cada vez mais comum nesta Democracia mediatizada, posso estar redondamente enganado.
Mas ficam aqui as minhas "impressões"....

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Paternidades

Confronto-me por vezes, sobretudo desde que comecei a dar os primeiros passos nesta profissão, com a assunção, por uma parte não desprezível da comunidade, que tenho funções inusitadas de paternidade sobre umas quantas almas, apesar do dismatch (assegurado) de ADN.
É assim por exemplo que o diabético chega sorridente à consulta, ainda mais gordo que o costume, com todos os parâmetros a assegurar descontrolo da doença, com inobservância manifesta de todas as recomendações, com o ar travesso do menino que chumbou no teste e nem quer saber.
Ninguém se interroga acerca da pertinência de tal pessoa estar a ocupar um lugar numa consulta onde poderia bem estar outro doente, mais interessado em seguir as indicações que nela são proferidas, e em controlar a sua doença, ao contrário da deste exemplo.
Aliás, alguns, em boa verdade, interrogam-se. Um Diabetologista francês disse, em conferência bem contestada, que no final das suas consultas dava indicação aos seus doentes para voltarem a partir de 3 meses daquela data, desde que pesassem menos dois quilos. Muitos consideraram tais palavras uma profanação da santidade da profissão... mas adiante.
Acima de tudo, questiono-me, e não raras vezes pergunto: qual a finalidade da presença daquela alma ali? As respostas, quando as há, variam dentro de um vasto e paranormal leque.
Também é assim, noutro exemplo, que o bêbado chega violento à Urgência, geralmente porque foi encontrado a fazer desacatos num local qualquer, e, pela alteração do estado de consciência da criatura, alguém julgou ser aquele serviço o indicado para o mesmo "curar" a bebedeira. Ou simplesmente porque alguém bebeu demais e está "sonolento", ou "enjoado" (não se riam, sucede mesmo isso, e com regular frequência...).
Não parece interessar nada que naquele serviço estejam pessoas a desempenharem supostamente bem a sua profissão, e que dispensavam os insultos, as grosserias ou simplesmente a perda de tempo com o energúmeno.
Não parece interessar nada que naquele serviço estejam pessoas a precisarem realmente de cuidados médicos urgentes, secundários a acaso maior que o entornar voluntário de excesso de álcool pelas goelas abaixo.
Não parece interessar nada que o alcoólico patológico seja responsável pelo estado em que se encontra, e que por isso deveria continuar a ser responsável pelo que faz no estado de inconsciência que ele próprio induziu. Poderia ser que no futuro, e proactivamente, ele pensasse duas vezes antes de voltar a ficar num estado semelhante.
O mesmo se aplica a um sem número de situações, em que se assume que a pessoa doente (muitas vezes a começar pela própria) não é responsável pela sua irresponsabilidade, e por isso carece de cuidados permanentes deste manã de bondade e paternalismo que é a figura clássica do médico dos dias que correm.
Julgo que só tínhamos a ganhar se passássemos a tratar pessoas que querem colaborar no seu prórpio tratamento, e na cura ou prevenção da doença.
Sou a favor do controlo de observância aos tratamentos.
Sou a favor da prevenção da aterosclerose em pessoas interessadas em prevenir a aterosclerose, e não no tratamento do "colesterol" de fumadores, e não no controlo da hipertensão de diabéticos indisciplinados.
Sou contra o lema: "mais vale prevenir o que se pode". Porque o lema sai caro, em recursos, em medicamentos e em acessibilidade aos cuidados por parte daqueles que têm uma ideia mais clara do que pretendem fazer com a sua própria saúde.
Ou seja, todos têm o direito, e os profissionais de saúde tem o dever, de informar a população para que se inteire das consequências dos seus comportamentos e status de risco.
Mas tratar, só se deve tratar quem quer.
E quem quer, trata-se.
Quem não quer ou quem não se trata, mesmo quando nem parecer saber que não se quer tratar, não se trata.
Sob pena de se perder, um dia, o direito à maioridade.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Morte Certa

Encontrei no site de um colega (MEMI) a seguinte notícia: "V.F.X: Família de grávida que morreu vai processar hospital
A família de uma mulher grávida do Carregado, cujo funeral se realizou no domingo, pretende mover uma acção judicial contra o Hospital Reynaldo dos Santos, em Vila Franca de Xira, por alegada negligência na morte da familiar, mas hospital contrapõe. "Vamos até às últimas consequências, até perder as forças", relatou à agência Lusa Inês Baptista, irmã gémea de Alexandra Alves Baptista, de 31 anos de idade, que faleceu na quinta-feira, "A autópsia acusou que ela tinha uma hemorragia hepática e uma eclâmpsia, mas para mim não chega", disse a familiar, que admite recorrer aos tribunais. Inês Alves Baptista não compreende como a irmã faleceu, após passar "de uma hora para a outra" a sofrer de lesões hepáticas que lhe "rebentaram o fígado", quando não tinha quaisquer antecedentes clínicos e uma vez que "se fosse doente as análises que tinha feito há uma semana acusariam". Contactada pela Lusa, a directora clínica do Hospital Reynaldo dos Santos, Ana Alcasar, ainda sem conhecer o resultado da autópsia, revelou que, numa primeira avaliação preliminar efectuada ao longo de segunda-feira, "não terá havido negligência por parte dos profissionais", mas a unidade hospitalar vai abrir um processo de avaliação interna, como acontece "sempre que há uma morte inesperada", no sentido de apurar responsabilidades. Alexandra Alves Baptista, grávida de 31 semanas, deu entrada na quinta-feira pelas 10:30 no hospital vila-franquense com tensão alta a 15/8, onde ficou internada, tendo sido a segunda vez que recorreu à unidade (da primeira vez sentiu também contracções) devido a problemas de hipertensão, causada por um alegado nervosismo resultante da morte de um familiar. Foram administradas duas injecções para controlar a tensão, após receber medicação oral que não surtiu efeito (em vez de baixar, subiu a tensão para 22/12). "Não sei que injecções eram, mas dez minutos depois a minha irmã começou a piorar, queixando-se de dores mesmo muito fortes na barriga e nos rins, estava cheia de suores, aos vómitos e a querer revirar os olhos", contou Inês Alves Baptista, numa altura em que a tensão já tinha descido para 10/5. Por parte do hospital, "não há uma relação causa-efeito", explicando que os problemas de hipertensão com alterações no sistema renal (eclâmpsia) são "frequentes" no fim da gravidez, mas neste caso o problema "desenvolveu-se de forma mais ou menos abrupta". Face ao estado clínico reservado, os médicos decidiram transferi-la para o Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa, a fim de retirar o bebé de dentro da mãe e colocá-lo na incubadora, já que o Hospital Reynaldo dos Santos apenas dispõe de incubadora a partir das 34 semanas. O agravamento da situação clínica obrigou os bombeiros a regressarem para trás [ quem deu a ordem?] de modo a antecipar a operação, conseguindo tirar ainda com vida o recém-nascido, que acabaria por morrer minutos depois. No momento da intervenção,"surgiu um problema porque ela estava com uma hemorragia hepática", contou Inês Alves Baptista, recebendo a informação do médico de que a sua irmã teria de ser reencaminhada para o Hospital Curry Cabral, para ser submetida a um transplante de fígado. Após dar aí entrada às 22:00 horas, acabaria por falecer meia-hora depois devido a uma hemorragia hepática e a uma eclâmpsia, segundo o resultado da autópsia, deixando duas filhas de sete e nove anos de idade. "Se ela estava com dores, se tinha a tensão alta desde há uma semana, porque não a mandaram logo para o São Francisco Xavier?", questiona a familiar, para quem "tem de haver um culpado". O Hospital Reynaldo dos Santos aguarda agora pelos resultados do processo de averiguações, que deverão ser conhecidos dentro de quinze dias, remetendo mais explicações para essa altura. Diário Digital / Lusa "
As reacções são de difícil controlo, mas de fácil explicação. Apesar de toda a gente o saber em teoria, ninguém está realmente preparado para os seguintes factos:
-Hoje em dia ainda se morre;
-Morre-se, mesmo que se seja criança, adolescente, mãe ou pai jovem, grávida, excelente pessoa, humanista, ...;
-Por vezes, por mais que essa pessoa seja (bem) assistida, morre na mesma.
Não sei o que se passou nesse Hospital e relativamente a essa senhora, mas sendo médico assolam-me inúmeras dúvidas quanto ao caso em particular. É uma situação delicada, para quem o dia-a-dia constitui-se de questões apesar de tudo parecidas,e que felizmente para todos nós acabam por resultar num "bem maior". Seja como for, sei o suficiente para, em atitude de "douta ignorância" dos factos, me escusar de falar sobre aquilo que desconheço.
Mas de duas coisas tenho a certeza:
1º: Devia ser considerado criminoso que, no rescaldo de uma situação traumatizante como esta, se entrevistem familiares que, por razões óbvias, não têm o estado de espírito ideal para emitir uma opinião ponderada sobre a matéria; esta é a altura inicial do luto, da negação e do inconformismo com a perda, e devia ser mais respeitado por aqueles que, com menores escrúpulos, imediatamente aproveitam as emoções mediatizadas para fazer subir um pouco mais o share da empresa privada para quem trabalham (ou as publicações, não interessa).
2º: A indignação e a desolação, são, mais que um direito, uma fatalidade para todos os que conheciam a vítima. O que não é sinónimo que exista, necessariamente, um "culpado".
Porque, e por menos preparados que possamos estar (cada vez mais) para aquilo que outrora era uma evidência, sim meus senhores, morre-se.
Morre-se sempre, e morre-se sempre mal.
O que distingue estes casos de morte precoce, no fundo, é que fica mais gente, e durante mais tempo, com saudades. É que não dá para desviar o olhar. É que não se trata de gente arrumada na prateleira dos excedentários da vida.
Aos 70 aninhos já ninguém se importaria muito com esta perda, em circunstâncias semelhantes.
Aos 80 até seria um alívio.
A morte é dura. E a vida não chega para nos prepararmos para ela, a nossa e a dos que amamos.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Sentidos da Longevidade

A beleza de uma criança a crescer. A feiura de um velho a perecer. A comoção perante uma criança triste. A evicção da solidão do velho. O fanado castiço. O desdentado embaraçoso. A atracção pelo potencial futuro. O desprezo pelo desempenho passado. A dor pelo sofrimento. A indiferença. O esforço altruista pelo bem-estar. O medo da despesa. O cheirinho a bebé. O fedor a velho. O encanto da aprendizagem. A intolerância pela demência. A birra tolerada. As manias insuportáveis. O palrar encantador. O guinchar medonho. ... O mundo é das crianças, e pelas crianças. Questiono-me frequentemente: será que sabemos o que dizemos, quando queremos ser velhos, muito velhos? Julgaremos nós sequer imaginar o que nos espera? Como será estar perante contemporâneos decrépitos, perante filhos com "mais que fazer", perante uma sociedade que nos olha como um encargo, e daqueles que urge aligeirar? Perante a fragilidade da idade acrescida da doença, perante a invalidez e a dependência, perante funcionários de lares e de serviços de saúde como os de hoje...?. No viés óbvio da minha visão destas coisas, julgo preferir morrer cedo, rodeado de gente que me ama e que vai sentir a minha falta, ainda enquanto elemento reconhecidamente útil da sociedade, e protegido por aqueles da indiferença. Não vejo empenho em resolver este problema. E para o resolver, seria preciso primeiro assumi-lo. Para o assumir teríamos que nos envergonhar, muito. Ainda nem demos o primeiro passo....

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Consciências

O que diferencia, perante a sociedade, aquele médico que denuncia má prática de um colega altruisticamente, em benefício exclusivo do mais fraco e do que menos possibilidades tem de se defender daquele que é mais ignorante, incapaz ou negligente, daquele médico que denuncia má prática de um colega mesquinhamente, por quezília, inveja e má fé, com o intuito único de chatear alguém de quem não se gosta por este ou aquele motivo, que nada tem a ver com a matéria usada para lhe estragar a vida (a denúncia)?
Nada, meus senhores.
Por isso evita-se. Por isso é raro.
Daí eu julgar ser preciso muita coragem para se denunciar um (mau) colega. Daí não ser preciso apenas "alguma" virtude para se enveredar por algo do género, mas quase um estado de excelência de alma que, pela raridade da coisa, não deixa de me espantar. O que só por si é pena e sinal dos tempos....
Assisti pois, em tempos, a algo assim.
Conheço o denunciante, e sei que o fez gratuitamente. Não a pedido dos doentes, que pelas mais diversas razões nem conhecimento têm da atitude dele. Não a troco de qualquer reconhecimento, que o não teve, e antes pelo contrário, passou a ser alvo, no mínimo, de desconfiança por parte de todos aqueles que consideram tal acto como uma traição ao sagrado princípio do "não denunciarás" ninguém da irmandade, por menos fraterno ou recomendável que seja. Não sem a ameaça mais ou menos velada de golpe igualmente forte, ainda que não movido por razões humanistas como foi o dele, para não dizer mais, ou menos....
Implicitamente leia-se: sob pena de se sujeitar a denúncias torpes e falsas. A muita areia para os olhos. Que em última análise resulta num baralhar de factos que confunde inevitavelmente quem não pertence ao meio nem conhece as pessoas.
Se a isso juntarmos uma progressão na carreira infinitamente menor do denunciante, quando comparado com o denunciado, o quadro ainda se torna mais perigoso. Ou mais confuso, para quem um dia leia as linhas e entrelinhas do sucedido.
O que esse meu bom amigo tem a ganhar com isso? Nada.
A perder, seguramente alguma coisa.
Se não contarmos com essa outra "coisa", periférica, que é a consciência. A dele.
Ele merece contentar-se com isso, com o prazer de se olhar no espelho. Pouca gente se contenta, pouca gente sequer se importa. E ele não terá muito mais com que se satisfazer no final desta história, creio.
Um grande bem haja, pois, a esse meu corajoso e anónimo colega. Na gratuitidade do seu acto, e na excelência da sua virtude.
Há ainda pessoas assim, meus raros, mas por isso mesmo ainda mais estimados, leitores: inspiradoras.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Desabafo 2

Ao contrário do que por vezes se espera, os médicos são simples humanos, sujeitos por isso às contingências das imperfeições próprias desta condição. Como tal, têm também superstições. Há uma superstição relativa a doentes que são enfermeiros ou médicos ou seus familiares. Dizemos na gíria que isso constitui um factor de risco e acreditamos que esses doentes têm ad initio uma maior probabilidade de ter complicações graves da sua patologia. Outra superstição diz respeito aos doentes que, ante a angústia e o mau-estar da sua doença, seja ela um simples resfriado ou uma pneumonia grave, deixam escapar as infames palavras “eu vou morrer”. Mais que manifestações de desânimo, acreditamos que essas palavras são verdadeiras e enexoráveis premonições.

Acho que estou perto de criar uma nova superstição pessoal. Esta está relacionada com os doentes cujos familiares obrigam os bolsos das lapelas das nossas batas a engolir indigestas notas. Acontece que no contexto do estudo que foi feito a propósito do dito síndroma febril se descobriu um cancro no rim... Doravante só usarei batas sem bolsos.

Desabafo 1

Vivi há tempos uma das mais deprimentes experiências com familiares de doentes. Tive um doente internado com um síndroma febril indeterminado a quem se colocou a hipótese diagnóstica de endocardite. Após explicar à família que isto poderia justificar quer a anemia, quer a febre que ele carregava aos ombros há cerca de mês e meio, quer o estado consumptivo “que o tem deixado só pele e osso” – diz a esposa – encontrei-me subitamente actor num quadro verdadeiramente surreal. A esposa do doente abre pronta e determinadamente a carteira de onde, em décimos de segundo, saltou uma nota de 20 euros. Enquanto balbuciava uns atrapalhadíssimos “não, não, deixe estar, não é preciso...” e esbracejava freneticamente como se, sem saber nadar, tivesse caído no meio do oceano, tentando defender-me da mão portadora da nota que avançava ameaçadora, a esposa continuou determinada, impingindo-me a nota pelo bolso da lapela da bata adentro. Simultaneamente pediu-me “ tome-me lá conta do homem...”.

Senti-me algo que não sei definir, mas que se situa em terra de ninguém, algures entre a vítima de suborno e a puta de esquina. Não tenho dúvidas dos bons intentos da senhora. Interpretei o gesto como sinal de gratidão por se ter chegado a um diagnóstico e talvez pelo modo empático como lhe expliquei a situação do marido. Apesar disso, esta interpretação não me alivia o mau estar... Aquela nota queima-me as mãos.

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

A Metamorfose

Um dos fenómenos mais curiosos que me atropelaram na vida foi a metamorfose ocorrida há cerca de uma dezena de anos atrás. Eu era um aluno acima da média, os professores diziam que eu seria "alguém", e que tinha mérito. As notas eram boas, as perspectivas agradáveis, os incentivos qb. Tinha só que "continuar sempre a trabalhar". Acabou-se o liceu, e passei pelo fino crivo do numerus clausus das Faculdades de Medicina da época, que contrariamente ao que se julga, era de malha muito mais fina que o de hoje (acabavam o liceu mais alunos, e não entravam nas faculdades mais de meia dúzia de centenas, sendo que hoje há mais do dobro disso de vagas...; médias mais altas de entrada? Exames menos selectivos, pois claro). Os pais andavam orgulhosos. E continuei a trabalhar. Noutras faculdades passeia-se para passar e trabalha-se para brilhar. Nas de Medicina trabalha-se para passar, e brilha quem pode, e não podem muitos. Mais seis anos de Sacerdócio, com penitência reconhecida pela saciedade. Coitado, ainda estuda que nem um cão com esta idade. Coitado, sempre tão espertinho e a trabalhar tanto, e sempre na dependência dos seus progenitores. E finalmente acaba essa Via Sacra sem fim à vista. E dá-se a dita metamorfose. Uma minhoquinha esforçada? Meritosa? Inteligente? Acima da média? Trabalhadora? Qual quê, tornei-me numa bela borboleta corporativista, preguiçosa, desleixada e insensível para com (a sensibilidade de) terceiros, arrogante e privilegiada. O meu carácter preferido deste novo eu é sem dúvida o privilegiado. Dá-me a agradável sensação que a minha influência move montanhas. Que os meus professores deram-me boas notas com temor pela minha ira. Que entrei na Universidade após ameaçar desencadear um Holocausto se me negassem a ditosa. Que a acabei intimidando os académicos que me leccionavam as aulas acenando o Gulag. Dá a sensação que os meus pais não são as pessoas esforçadas e remediadas que sempre foram, e que não fizeram todos os sacrifícios que sempre fizeram para me facultarem as condições para todo este estudo, mas sim que afinal, e contra todo o conhecimento dos próprios e dos seus conterrâneos, pertenciam a uma qualquer Nobreza digna de "favores" de Estado capazes de imporem uma licenciatura destas aos seus descendentes. Quase que me dá vontade de pedir humildemente desculpas por ter sido tão indigno merecedor desta excelente condição inata. Até me esqueço que tive trabalho, e que tudo isto foi a custo de esforço. Mas aí entra então a tão propalada "arrogância". Arrogância de achar que estou onde cheguei por mérito próprio. Arrogância de julgar que precisei de ser melhor para estar onde muitos quiseram chegar e não conseguiram. Arrogância, por não estar humildemente grato por esta "dádiva" da sociedade à minha pessoa. Também sou arrogante porque uns quantos profissionais gostavam de ter sido médicos e não conseguiram. E como consegui, devo ter a mania que sou esperto. Também sou corporativista, agora. Ninguém me pergunta se concordo ou discordo desta ou daquela posição da "minha" OM. Ou de outras, o que até acontece com mais frequência, acerca das quais nem tenho sequer palavra a dizer (ministérios, ARS's, governos, de onde emana o grosso das orientações que, depois, acabamos por ter que acatar e seguir, pagando o preço dos erros de outrém, sendo que outrém nunca está "no terreno" para provar dos seus remédios). Sou corporativista porque pertenço "a eles". Sou mesmo, a bem dizer, "eles" (os privilegiados, os arrogantes, etc...). Esqueci-me de dizer que também sou rico. E sou rico porque tenho emprego garantido, porque tenho casa e carro (as notas de crédito todos os meses não passam de uma alucinação), e já nem sei por que outros motivos, mas que passam seguramente pelo facto da "Sociedade em Geral" não usufruir de boas condições socio-profissionais. O que faz de mim um chulo, e nem vale a pena discutir. Também sou rico porque meia dúzia de fulanos "da minha classe" têm uma privada florescente, e mais uns quantos conseguem avolumar quantias apreciáveis de horas extraordinárias. Não dou é pela partilha, mas enfim, nada disso interessa aos iluminados que, graças a Deus, povoam este país e banham-no com a sua imensa sabedoria acerca da realidade da minha existência. E também sou, finalmente, uma espécie de malfeitor, porque umas quantas abéculas da "minha classe" são corruptos (esse fenómeno que, como todos sabem, é inerente à Medicina), vendem remédios a troco de torradeiras ou congressos nas Maldivas, e exploram o povo doente das mais inusitadas maneiras, bem conhecidas de todos os espectadores diferenciados da nossa excelente, imparcial e anti-sensacionalista comunicação social. E esta foi a breve história da minha metamorfose, do que outrora fora uma minhoquinha virtuosa, para esta afortunada mas defeituosa borboleta que sou hoje....

quarta-feira, 25 de julho de 2007

domingo, 22 de julho de 2007

Retóricas

-Dr., vou morrer? -Claro que vai....

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Os Inabaláveis

Quem faz Urgências sabe disso.
Quem vai às Urgências num dia mau (ou numa hora má) também.
Falo do problema recorrente da espera até ser atendido, e depois até ver concluída a investigação que se entendeu como apropriada.
Isso dá pano para posts durante os próximos anos, e por isso limito-me a comentar um "clássico":
O doente que é triado, e espera pela sua vez de ser atendido. Espera, espera, vê outros a chegarem depois e triados como prioritários relativamente a ele a passarem-lhe à frente, até que desespera.
No desespero tem vários raciocínios viciosos, próprios da paranóia que a ansiedade do momento proporciona, a saber: estes médicos não trabalham; isto da triagem é uma treta; o "sistema" é uma vergonha.
Dos pensamentos, comuns a todos nós mortais, aos actos, é uma questão de maior ou menor (respectivamente) educação. Aquela parte racional que se sobrepõe ao emocional. E o racional é: isto sucede porque de facto, e de acordo com o método de triagem, devo ser atendido depois de todos os que me estão a passar à frente; isto sucede devido à contenção de despesas necessária à sobrevivência do SNS, em que cada vez mais se escalam o número mínimo de profissionais necessários, e não o ideal, para servir de balão de oxigénio nas horas de maior afluência.
Pois, porque para haver atendimento rápido nas horas críticas, nos dias maus, nas estações más, é preciso, não se iludam, que durante boa parte do dia os profissionais presentes estejam sub-aproveitados. O preço? Mais dinheiro pago pela sua presença. O ganho? Atendimento célere a todos em qualquer altura, sem "rupturas".
Na situação actual, a corrente é de sentido inverso: mínimo necessário de meios humanos ao funcionamento "regular" na maior parte do tempo. O ganho? poupa-se umas valentes massas. O preço? Espera-se.
Às vezes muito; espera-se que a triagem funcione bem; e espera-se que não existam imponderáveis nas equipas escaladas (a falta de um elemento significa muitas vezes o descalabro...).
Mas saibam que a espera não quer dizer que "ninguém liga" à doença (está apenas priorizada como sendo passível de atendimento mais tardio relativamente a outras...); e saibam que a espera não quer dizer que "não se está a trabalhar" atrás da porta que separa os balcões da sala de espera (pelo contrário, o trabalho torna-se mais contínuo, visto que não há pausas obrigatórias, por ausência de doentes para atender...).
Eu não compreendo muito bem que se "poupe" nas Urgências.
Acho que se deve melhorar o sistema de trabalho (com equipas próprias, como se está a começar a fazer). Mas se há sítio onde de facto se trabalha, pela minha experiência, é no atendimento das Urgências. E se há sítio onde não se pode "arriscar" falta de meios, também é nas Urgências. Pela sobrecarga que isso representa para os profissionais presentes. Pela importância, sobretudo em Portugal em que os Cuidados Primários ainda falham muito, de não se deixar passar nada em claro (porque não há "rede").
Sob pena de acontecer o que vai sucedendo no dia-a-dia dos hospitais. Pessoas que quando são atendidas estão fartas da vida pela longa espera. Médicos que quando atendem estão fartos da vida pelo trabalho contínuo (que é muito cansativo, acreditem...).
Espera-se do doente que não descarregue nos profissionais (mas sim no livro de reclamações, aliás sub-utilizado) a sua frustração. Espera-se dos profissionais que sejam monges budistas quando certos doentes os insultam, por esperas às quais eles são alheios, e por afluências invulgares das quais são as principais vítimas.
Já tive problemas por não ser um monge budista. Ninguém compreende (na "sociedade") que eu ou outro profissional de saúde não seja um monge budista. E por isso mesmo, não tenho outro remédio senão travestir-me, não o sendo, de monge budista, uma vez por semana.
Isso resulta em menos problemas sociais, mas reconheço que perturba a minha saúde mental.
E às vezes falha.
É a vida....

Reforços!

Isto de blogs, para estreantes, tembém implica formação contínua.... Eu descobri que não dava conta disto sozinho. Por isso, minhas senhoras e meus senhores, eis os meus bons amigos, nesta classe onde a gente decente pelo visto tanto rareia: -Maimonides e Choque Céptico! Uma junta...

Armas silenciosas para guerras tranquilas - estratégias de programação da sociedade

1- A estratégia da diversão

Elemento primordial do controlo social, a estratégia da diversão consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e da mutações decididas pelas elites políticas e económicas, graças a um dilúvio contínuo de distracções e informações insignificantes.

"Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por assuntos sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado, sem nenhum tempo para pensar, voltado para a manjedoura com os outros animais".

2- Criar problemas, depois oferecer soluções

Este método também é denominado "problema-reacção-solução". Primeiro cria-se um problema, uma "situação" destinada a suscitar uma certa reacção do público, a fim de que seja ele próprio a exigir as medidas que se deseja fazê-lo aceitar. Exemplo: deixar desenvolver-se a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos, a fim de que o público passe a reivindicar leis securitárias em detrimento da liberdade. Ou ainda: criar uma crise económica para fazer como um mal necessário o recuo dos direitos sociais e desmantelamento dos serviços públicos.

3- A estratégia do esbatimento

Para fazer aceitar uma medida inaceitável, basta aplicá-la progressivamente, de forma gradual, ao longo de 10 anos. Desemprego maciço, precariedade, flexibilidade, deslocalizações, salários que já não asseguram um rendimento decente, tantas mudanças que teriam provocado uma revolução se houvessem sido aplicadas brutalmente.

4- A estratégia do diferimento

Outro modo de fazer aceitar uma decisão impopular é apresentá-la como "dolorosa mas necessária", obtendo o acordo do público no presente para uma aplicação no futuro. É sempre mais fácil aceitar um sacrifício futuro do que um sacrifício imediato. Primeiro porque a dor não será sofrida de repente. Segundo, porque o público tem sempre a tendência de esperar ingenuamente que "tudo irá melhor amanhã" e que o sacrifício exigido poderá ser evitado. Finalmente, porque isto dá tempo ao público para se habituar à ideia da mudança e aceitá-la com resignação quando chegar o momento.

5- Dirigir-se ao público como se fossem crianças pequenas

A maior parte das publicidades destinadas ao grande público utilizam um discurso, argumentos, personagens e um tom particularmente infantilizadores, muitas vezes próximos do debilitante, como se o espectador fosse uma criança pequena ou um débil mental. Quanto mais se procura enganar o espectador, mais se adopta um tom infantilizante.

"Se se dirige a uma pessoa como ela tivesse 12 anos de idade, então, devido à sugestibilidade, ela terá, com uma certa probabilidade, uma resposta ou uma reacção tão destituída de sentido crítico como aquela de uma pessoa de 12 anos".

6- Apelar antes ao emocional do que à reflexão

Apelar ao emocional é uma técnica clássica para fazer curto-circuito à análise racional e, portanto, ao sentido crítico dos indivíduos. Além disso, a utilização do registo emocional permite abrir a porta de acesso ao inconsciente para ali implantar ideias, desejos, medos, pulsões ou comportamentos...

7- Manter o público na ignorância e no disparate

Actuar de modo a que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os métodos utilizados para o seu controle e a sua escravidão.

"A qualidade da educação dada às classes inferiores deve ser da espécie mais pobre, de tal modo que o fosso da ignorância que isola as classes inferiores das classes superiores seja e permaneça incompreensível pelas classes inferiores".

8- Encorajar o público a comprazer-se na mediocridade

Encorajar o público a considerar bom o facto de ser idiota, vulgar e inculto...

9- Substituir a revolta pela culpabilidade

Fazer crer ao indivíduo que ele é o único responsável pela sua infelicidade, devido à insuficiência da sua inteligência, das suas capacidades ou dos seus esforços. Assim, ao invés de se revoltar contra o sistema económico, o indivíduo desvaloriza-se e culpabiliza-se, criando um estado depressivo que tem como um dos efeitos a inibição da acção. E sem acção, não há revolução!...

10- Conhecer os indivíduos melhor do que eles se conhecem a si próprios

No decurso dos últimos 50 anos, os progressos fulgurantes da ciência cavaram um fosso crescente entre os conhecimentos do público e aqueles possuídos e utilizados pelas elites dirigentes. Graças à biologia, à neurobiologia e à psicologia aplicada, o "sistema" chegou a um conhecimento avançado do ser humano, tanto física como psicologicamente. O sistema chegou a conhecer melhor o indivíduo médio do que este se conhece a si próprio, permitindo deter um maior controlo e um maior poder sobre os indivíduos.

Ver Armas silenciosas para guerras tranquilas

Cepticemia

Um artigo publicado em Dezembro de 2003 no jornal britânico Guardian refere que centenas de artigos publicados em jornais médicos são escritos por autores fantasma e assinados por médicos ou académicos, preferencialmente conhecidos e com capacidade de influenciarem opiniões, a soldo das companhias farmacêuticas. Tendo essas publicações forte influência nos hábitos de prescrição e nos tratamentos providenciados pelos hospitais, há assim repercussão directa no lucro daquelas.

Esse estudo estima que cerca de metade dos artigos dessas publicações seja escrito por autores fantasma. Esta prática atinge até bíblias médicas como o New England Journal of Medicine, o British Medical Journal e a Lancet, sendo praticada por importantes companhias como a AstraZeneca e a Pfizer. O Dr. Richard Smith, editor do British Journal of Medicine, admitiu que esta prática é um problema grave, dizendo que são enganados pelas companhias farmacêuticas. “Os artigos chegam com o nome de médicos, descobrindo-se com frequência que alguns deles têm pouca ou não têm ideia do que escreveram”.

A deificada medicina baseada na evidência tem muito que se lhe diga, não é? A evidência é como a verdade: pode ter tantas cores e ângulos quantos os olhos que a vêem.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Numerus Clausus

Os dois gumes da faca:
-Se demasiado restritivo, torna refém o Estado (logo, os Cidadãos), dos caprichos corporativistas de uma classe;
-Se demasiado liberal, torna precário o exercício de uma profissão, deixando os profissionais à mercê de leis de mercado, o que em saúde é seguramente perigoso....
Ou seja, dever-se-iam formar profissionais qb que preenchessem os quadros do Estado no SNS, e mais uma determinada percentagem de supra-numerários, apenas para colmatar lacunas e não deixar que se apliquem critérios meritocráticos na ocupação dos cargos, bem como preencher um sector privado que se pretende competitivo, e "a puxar" pelo público.
Claro que pelo meio têm que ser alteradas as regras quase todas da função pública.
Em 1º lugar, deixarem de ser de nomeação partidária os postos administrativos, e estarem dotados de significativa autonomia na gestão.
Em 2º lugar, criarem-se condições e mecanismos para os Directores de Serviço serem nomeados, o desempenho dos serviços que os mesmos dirigem servir para avaliar a gestão das chefias, e os mesmos directores serem responsabilizados por aquelas pelo funcionamento do serviço.
3º: criarem-se condições para os elementos constituintes dos serviços estarem todos sob a alçada desse director, serem da escolha do mesmo, e flexibilizar-se essa constituição e escolha.
4º: separar de uma vez por todas o privado do público
Ou seja, tudo ao contrário do que vai sucedendo hoje em dia.
As administrações, boas ou más, lá se vão sucedendo ao sabor das cores governativas, incólumes na sua incompetência, não recompensadas nos méritos.
Os directores de serviço, bons ou maus, perpectuam-se ou são discriminadamente destituídos nos cargos, ao sabor dos mesmos critérios (partidários). E os elementos que constituem os mesmos serviços não estão sob a alçada do director, não são escolhidos pelo director e nem têm sequer que obedecer ou alinhavar com as linhas estratégicas que o director, se lhe apetecer, quiser traçar. E não estamos a falar apenas de médicos, mas de todos os elementos que constituem um serviço hospitalar. Cada grupo com o "seu" director. Cada grupo com a "sua" linha estratégica, quando essa existe. Cada grupo com as "suas" queziliazinhas e rivalidadezinhas bacocas.... Basta aliás passear por uns quantos blogs para se perceber isso.
Em suma, isto é tudo uma enorme bandalheira. E só pode melhorar.
Só espero que não a custo dos justos. Duvido.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Lei Anti-Tabaco IV

"Despesas"* do estado com o tabaco
Segundo uma estimativa divulgada pelo Infarmed, o tabaco foi responsável, em 2005, por custos na ordem dos 434 milhões de euros (434.000.000 Euros) em internamentos hospitalares, medicamentos, consultas e exames.
De acordo com um estudo realizado por investigadores da Universidade Católica Portuguesa e da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, os internamentos motivados pelo tabagismo custaram 126 milhões de euros, uma verba que acresce aos mais de 308 milhões gastos em medicamentos, consultas e meios complementares de diagnóstico.
Valor de receita do imposto de consumo sobre o tabaco inscrita no Orçamento de Estado de 2007: 1.395.000.000 Euros.
*Leia-se: lucro

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Séries Televisivas (Médicas)

Vejo apenas duas: o "House" e o "ER". Às vezes, geralmente em compactos que apanho casualmente nos fins de semana.
Mas gosto de ambos.
O House, um Internista por excelência (para os que não sabem o que é a Medicina Interna, finalmente existe uma referência globalmente conhecida para ajudar a fazer entender a coisa), retrata bem as virtudes e dificuldades das sua Especialidade. É a mãe de todas as Especialidades Clínicas, que trata o doente como ser global. É Cardiologia, Nefrologia, Neurologia, Psiquiatria, Gastrenterologia, Reumatologia, etc. Por vezes, em delírios próprios dos fazedores de séries menos conhecedores da realidade das coisas, até chega a ser Hemodinamista de intervenção, Cirurgião, Neuro-cirurgião, Imagiologista, Patologista Clínico, Anatomo-patologista, enfim, mesmo tudo, o que, convenhamos, rebenta com os limites do exagero, mesmo para um admirador como eu da Medicina Interna....
Mas lá transmite a mensagem: é a Medicina dos diagnósticos difíceis, dos diagnósticos raros, das doenças orfãs. É aquele a quem se recorre quando todos os outros desistiram. É uma Especialidade de intervenção, invasiva, iminentemente hospitalar. O "filho pródigo" do Intensivista (médico de Cuidados Intensivos). Lá como cá.
Claro que cá também trata Patologia de rotina de outras especialidades, e não apenas os casos difíceis. E sub-especializa-se em múltiplas áreas, conforme as carências locais dos diversos sítios. Aliás é interessante ver que a esmagadora maioria das sub-especialidades portuguesas tem como pais fundadores Internistas dedicados às respectivas áreas.
Também foca os grandes pontos fracos da Especialidade. O facto de ser iminentemente hospitalar, logo, pouco lucrativa porque sem saída na privada. O facto de não ser de todo rentável para qualquer administração que se preze, que preferem diagnósticos e tratamentos rápidos e lineares a grandes investigações (e investimentos) diagnósticos em doenças com tratamento prolongado. Pouco lucrativa para os próprios, dispendiosa para as administrações, e está encontrado o cocktail que leva à elevação do ego, condição sine qua non de quem opta pelo sacerdócio em causa. E que mais uma vez o House eleva ao exagero, com o seu espírito irrascível e cínico.
Mas é, sem dúvida, onde reside aquele "espírito" de Medicina que mora no subconsciente de todos.
O ER é também interessante, talvez uns furos abaixo do House (cujos diagnósticos são discutidos no dia-a-dia pela própria classe médica), e mostra um serviço de Urgência, caótico como os nossos, mas que em tudo o resto funciona bastante melhor.
As grandes diferenças?
Se no House residem essencialmente nas melhores condições físicas, e no exagero da exponenciação dos skillings do seu team, no ER tem a ver com quase tudo, no que ao trabalho médico diz respeito. Aqui não nos limitamos a ver o doente e a pedir os exames, que aparecem feitos depois. Aqui temos que ver o doente (e ver implica fazer tudo, desde medir a tensão até puxar o aparelho dos ECG, colher algumas análises, preencher os pedidos de análises e exames imagiológicos (quem me dera que fosse como na série, em que basta falar e alguém aponta essas coisas todas, e pode-se passar logo para o doente seguinte...), regatear os exames ou observações com os colegas com as esperas que isso implica (há que encontrá-lo primeiro...), .... No fundo, lá optimiza-se tudo, a acreditar da similitude da série com a realidade deles. O médico faz trabalho de médico, o secretário faz o trabalho de secretariado. Cá o médico faz tudo, e ninguém se importa que por fazer tudo, faça menos Medicina.
Bem, no fundo e em suma, séries boas de se ver para passar o tempo.

terça-feira, 29 de maio de 2007

Greve

Eu não acredito em greves.... O fundamento da coisa está no incómodo que podemos causar ao cidadão comum, com a agravante de no nosso caso ser um cidadão potencialmente doente, incómodo de tal forma insuportável que o levamos a pressionar as instâncias x a vergarem-se perante uma reinvidicação (mais ou menos legítima) dessa forma, digna dos desígnios de certo Marquês do passado. Ou seja, chateamos uns para esses lá convencerem o outro a fazerem o que nós queremos. Ainda que o outro ache que não temos razão nenhuma, e que os primeiros gostassem na realidade é que nos obrigassem a trabalhar, quiçã com umas vergastadas com vara verde para nos deixarmos de caprichos. É perverso, já que os mais fracos é que sofrem, e ser pela exaustão dos mais fracos que se procura atingir um determinado fim. Quantos de nós não quiseram já passar com 8 carruagens por cima do maquinista da CP que se baldou numa greve, ou do motorista da Carris? Por aí depreendo que com os médicos não há de ser diferente, quando um doente chega ao almejado dia da consulta, muitas vezes marcada tardiamente relativamente à sua necessidade, e chegado o bendito conclui que por infelicidade esse calhou num dia de greve e o médico ficou em casa, com marcação posterior da mesma. Ou chega à Urgência e nota que as centenas de almas que deveriam ir ao SAP da zona (agora USF) acabaram por optar pelo serviço de Urgência Central, e estão à sua frente? E quem não tem capacidade para chatear, numa sociedade assim, lixa-se. Pois não pode fazer greve. Pena é que também se lixe quem tem esse poder e não o exerce. Bem sei que o autismo das entidades eleitas pode também levar ao desespero daqueles que lhes tentam fazer chegar a voz, por vezes razoável. Mas não devia ser assim. Ou só devia ser assim em último caso. E em último caso não é uma vez por ano. É uma vez por legislatura, ou menos ainda, e ter adesão total (senão revela que o protesto nem chega a ser consensual) e prolongada. E deve ser séria, ser explicada (a começar aos interessados na greve, o que raramente é o caso). E nunca coincidir com tangentes aos fins de semana (honra seja feita a esta...). Eu não vou fazer greve. Vou votar, daqui a poucos anos. PS: acabo aqui, já que bem sei que isso do "votar" teria mais uma bíblia de considerações pela frente, e uma conclusão triste. Mas olho para a França e espero um futuro melhor, nesse capítulo de Democracia participativa....

Friezas

Só quem nunca esteve na pele de um doente, nunca estranhou a brevidade (raramente mais que uns quantos minutos, algo mais na primeira visita) das passagens do médico pela sua cama.
De pouco vale saber que muito do trabalho dele consiste também na avaliação da parâmetros constantes do processo, de consulta de análises, de reavaliações da terapêutica em curso, de exames que se aguardam, etc....
Só quem nunca esteve na pele de um doente nunca estranhou essa constante adaptação que se tem que fazer às rotações pelas camas dos enfermeiros, para a higiene, para a alimentação, para a toma de fármacos, para a avaliação de parâmetros vitais.
De pouco vale saber que há mais x doentes para ele orientar, num espaço de tempo determinado.
Só quem nunca esteve na pele de um doente nunca estranhou o quarto partilhado, com convivas muitas vezes assaz barulhentos, sofredores, pré-mórbidos, ou simplesmente fraca companhia.
As camas desconfortáveis, a comida desensabida, a total ausência de privacidade, a indignidade da imobilização e da incapacidade, virtude de dependência total, para a realização autónoma das mais básicas necessidades.
A ausência de urinol que está longe ou já cheio, a necessidade da arrastadeira.
As horas que não passam, à espera de um exame, à espera de alguma melhora e autonomia, à espera de alguma visita.
E aqueles que nunca têm visitas, ou cujas visitas só parecem preocupadas com a data da alta?
E aqueles que, apesar destas incríveis condições que se verificam nos hospitais de hoje em dia, parecem temer o regresso a casa acima de tudo o resto?
Há vidas muito tristes, meus senhores. Ou que acabam a dada altura por se tornar muito tristes.
Eu chamo-lhe o "passar do prazo".
E pode acontecer a qualquer um....

terça-feira, 22 de maio de 2007

Técnicos de Saúde

Os estuprados.
Por exemplo, os Técnicos de Laboratório. Pela minha experiência, muitos laboratórios da actualidade limitam-se a lidar com máquinas (fruto do avanço tecnológico), nas quais introduzem o sangue (e outros fluidos) dos doentes. Já lá vai o tempo do microscópio e outros adereços que tal, até para exames microbiológicos. Hoje em dia, quem manipula os produtos, deste a sua colheita até à impressão do relatório, são os técnicos, cabendo aos meus colegas aferir da qualidade destes últimos. E dar o "carimbo" de aprovação.
Isto seria tudo muito bonito se os erros, perante centenas de relatórios diários, não fossem inevitáveis, com ou sem supervisão. E se todo o processo não fosse de sobremaneira "encalhado" por esta dinâmica burocrática (as análises surgem-nos nas mãos com inusitada velocidade a partir do momento em que o "carimbo" deixa de ser necessário). Por falar nisso, é interessante como todos se conformam com a ausência física, considerada portanto aceitável a partir de certa hora da noite, do médico analista, mas já não durante as horas do dia.
E o problema aqui não está na utilidade, que é obviamente real, do Médico Analista. Está na teimosia em insistir-se nessa função de "portador do carimbo", mesquinha, ridícula e absolutamente desprovida de qualquer efeito prático, além do nefasto atraso que provoca na obtenção dos resultados por parte do Clínico Hospitalar. Ele é necessário, sim, mas para outras coisas. Ou, visto de outra forma, provavelmente menos necessário do que aquilo que se pretende artificialmente fazer crer.
Idem aspas para técnicos de Imagem. Conheço uma, que faz ecografia, por sinal muitos mais ecocardiogramas que qualquer Cardiologista, muitos mais doppler dos vasos do pescoço e transcraniano do que qualquer Neurologista, e que resolveu, com a sua presença no apoio aos serviços, o problema do atraso, vide impossibilidade prática, de se obterem esses exames em tempo útil. Só que lá está, também ela precisa do "carimbo" de um "especialista" qualquer.
O argumentário para esta demência? Geralmente anda à volta da faculdade "interpretativa" desses exames, que estes últimos acrescenterão ao pacote. Claro que ninguém pergunta se o clínico que pediu o exame está sequer interessado em "interpretações", ao invés de descrições (deixando as interpretações para ele próprio). Claro que ninguém comenta ou investiga se o "olhar interpretativo" não introduz um viés à correcta descrição das imagens, que se quer mais denotativa, e menos conotativa, prejudicando assim a utilidade (e realidade) do exame. Claro que os erros se mantêm, quando existem. Claro que ninguém no seu perfeito juízo espera pelo relatório final, contentando-se com a informação verbal do momento (da técnica, claro está), muito mais dinâmica, e invariavelmente sinónimo daquilo que nos surge na mesa, fora de horas, vários dias depois.
Chega-se aliás ao cúmulo, neste caso que eu testemunho no meu dia-a-dia, da senhora até saber fazer outras técnicas ecográficas (que não existem na instituição), não as podendo porém realizar por falta de quem lhes dê uma "carimbadela". Lá as vai fazendo, a nosso pedido e a bem do doente, mas sempre off the reccord, já que susceptibilidades feridas, neste país, podem fazer muita mossa, até às gentes de bem....
Eu próprio descobri que o mesmo técnico que faz um ECG a um doente meu no Hospital (que eu depois interpreto, às dezenas por semana), com toda a competência (aliás a "dificuldade" da "coisa" está em saber onde se põem um conjunto de ventosas), não os pode fazer em ambulatório porque precisa de uma "interpretação" antes de chegar ao médico que o requisitou (mesmo que esse não tenha pedido qualquer relatório, note-se). Aliás, em ambulatório, nem eu estou tãopouco "habilitado" a interpretar um ECG (perco essa faculdade quando ultrapasso o portão do Hospital). Obviamente que no Hospital, onde as pessoas são pagas à hora (e ganham o mesmo que façam x, quer façam x ao quadrado), seria uma chatice (além de supérfluo) o Cardiologista opinar sobre todos os ECG. Claro que, fora do Hospital, ele não só não se importa como até faz questão (através da Sociedade que o defende).
Isto também é válido para uma série de exames (radiográficos, etc...), que, de um momento para outro, carecem de validação ao mesmo tempo que deixam de ser "Serviço Público".
Quanto mais velho fico, menos paciência tenho para este concentrado de estupidez.
Mas as coisas vão melhorando, julgo.... E isso há de mudar um dia, devagarinho.

terça-feira, 15 de maio de 2007

Competências

Este é um problema recorrente nos tempos que correm.
Será um determinado autarca competente para gerir a autarquia? Serão certos Deputados competentes para orientar os destinos da Nação? Será um determinado médico competente a realizar técnicas ditas de outras Especialidades? Será um Enfermeiro competente para executar diversos actos ditos "Médicos"? Será o doente competente para avaliar cuidados de Saúde?
E quem determina a Competência, e com que critérios?
A Competência, e tal é tanto mais verdade quanto mais diferenciadas se tornam as técnicas ou actos em causa, deve ser avaliada, e estudada. A Competência, num país onde existem variados "vícios" de sistema, serve também para gerir monopólios, tornando exclusivas coisas que em alguns casos se poderiam generalizar mais, a bem do Mercado e logo, das populações.
A Competência é bem aceite, quando demonstrados os efeitos nefastos da sua atribuição a quem não a deveria ter. Da mesma forma, é mal aceite quando, mais ou menos claramente, veda o direito de outros a exercerem livre e adequamente.
Ou seja, quem sabe deve poder fazer. E quem faz deve deixar outros que saibam fazer também.
Passando ao concreto, num exemplo actual, os Enfermeiros devem poder "atender" as pessoas num determinado Distrito, substituindo um tradicional modelo que dantes seria personalizado por um médico, desde que cumpram adequadamente uma determinada função atribuída no novo modelo (que obviamente não seria a mesma que o médico desempenhava no velho), e que daí não resulte mal maior (ou bem menor) para quem precisa deste serviço.
Provadas estas premissas, é aceitável, ainda que arriscado (cabe aos responsáveis assumirem isso, mas a vida também se faz de riscos, desde que esperadamente controlados, neste caso), um período "experimental" de um novo sistema de orientação dos doentes. Deve ser controlado, e cuidadosamente avaliado.
Porque em última análise, o que realmente interessa é que o doente do tal Distrito veja o seu problema resolvido, com aqueles Enfermeiros, a funcionarem daquela maneira, e articulados assim como está planeado com o demais Sistema de Saúde local.
Com aqueles Enfermeiros, que são os nossos, e não os dos EUA. Com aquelas Competências, que lhes foram atribuídas, e não outras estudadas num contexto que não o nosso.
Se funcionar, nada a opor.
Até lá, cuidado com as generalizações, com as extrapolações e com as insinuações de parte a parte das corporações envolvidas. Isto para aqueles que se preocupam em não deixar de ter razão. E em manter legítima Competência para avaliações sociológicas futuras.

Síndroma Febril Indeterminado

Casos ingratos, e interessantes de um ponto de vista profissional.
Ou seja, febre isolada, sem diagnóstico, durante pelo menos 3 semanas segundo alguns critérios algo mal definidos internacionalmente.
Para o doente, a angústia da doença sem rótulo.
Para o médico um escalar de exames cada vez mais invasivos.
Quanto mais o tempo passa, menos a hipótese infecciosa (uma das 3 principais) se vislumbra, e mais se consideram as hipóteses neoplásica e de doença inflamatória sistémica de outra causa (do grupo de "doenças raras", se quiserem...).
Exames cintigráficos, biópsia hepática, da artéria temporal, óssea e mielograma, punção lombar, exames imagiológicos diversos, com ou sem arteriografia, análises e serologias menos comuns a acompanhar o corropio de ideias que vão surgindo à cabeça numa determinada circunstância, mais ou menos apoiadas em opiniões retiradas de artigos recentes ou das visitas médicas....
Até que às vezes se esgota a imaginação, e opta-se por um tratamento sem alvo certo (uma "prova terapêutica"), com imunossupressores ou antibióticos.
Os desfechos felizes, grandemente dependentes de uma enorme equipa estruturada (médico assistente, imagiologistas, endoscopistas, ecocardiografistas, analistas, patologistas, enfermeiros, outros médicos chamados a opinarem sobre este ou aquele sinal mais específico...), resultam geralmente numa bela recordação, quem sabe num paper.
Muitos outros, infelizes, quer pelo rótulo final de mau desfecho, quer por ausência total de rótulo até ao exitus, contam para a memória de insatisfação pessoal e sensação de dever não cumprido. Além da insatisfação de quem se recusa a compreender, e quem sabe se arrepende de não ter apostado noutro cavalo (vulgo médico, neste caso).
São casos crónicos, para com os quais a frieza da rotina e do contacto acelerado não protegem aqueles que acabam por conhecer demasiado bem a pessoa para se limitarem ao doente.
Bem sei que deverão estar todos a pensar que cada caso (revendo-se na pele de indefeso doente) deve ser para o médico um caso de vida ou morte, em que ele empenha naqueles curtos segundos de observação e actuação toda a sua concentração. Lamento desiludir-vos, pois felizmente, na grande maioria dos casos, aborda-se o doente com um organigrama mental mais ou menos sistematizado conforme as queixas ou sinais que se observam (ou seja, a participação do próprio doente é-lhe muitas vezes de crucial importância), sem empatia ou emoção pela dispneia, pela sensação iminente de morte, pela dor excruciante, pela tristeza, apenas focado em observar isso, tratar assim, excluir aquilo, e por aí fora. Com um toque pessoal e característico de cada um, bem se vê....
Isto tudo surge porque estou neste momento a viver um caso destes, em que começo a gostar e a empatizar mais do que queria com o meu doente, em que começo a ser seriamente detestado pelos seus familiares, e em que ainda não atingi a satisfação do diagnóstico, que não sei ainda se será de feliz descoberta ou não. Já lá vão vários meses de doença, as últimas três semanas (com muita morbilidade à mistura) ao meu cuidado.
No princípio queria ser bem sucedido por mim, era uma questão principalmente de super-ego. Cada vez mais quero ser bem sucedido pelo meu doente, que continua a sofrer com a incógnita da sua mazela.
Mas ainda estou cheio de ideias.
A ver vamos....