quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Morte Certa

Encontrei no site de um colega (MEMI) a seguinte notícia: "V.F.X: Família de grávida que morreu vai processar hospital
A família de uma mulher grávida do Carregado, cujo funeral se realizou no domingo, pretende mover uma acção judicial contra o Hospital Reynaldo dos Santos, em Vila Franca de Xira, por alegada negligência na morte da familiar, mas hospital contrapõe. "Vamos até às últimas consequências, até perder as forças", relatou à agência Lusa Inês Baptista, irmã gémea de Alexandra Alves Baptista, de 31 anos de idade, que faleceu na quinta-feira, "A autópsia acusou que ela tinha uma hemorragia hepática e uma eclâmpsia, mas para mim não chega", disse a familiar, que admite recorrer aos tribunais. Inês Alves Baptista não compreende como a irmã faleceu, após passar "de uma hora para a outra" a sofrer de lesões hepáticas que lhe "rebentaram o fígado", quando não tinha quaisquer antecedentes clínicos e uma vez que "se fosse doente as análises que tinha feito há uma semana acusariam". Contactada pela Lusa, a directora clínica do Hospital Reynaldo dos Santos, Ana Alcasar, ainda sem conhecer o resultado da autópsia, revelou que, numa primeira avaliação preliminar efectuada ao longo de segunda-feira, "não terá havido negligência por parte dos profissionais", mas a unidade hospitalar vai abrir um processo de avaliação interna, como acontece "sempre que há uma morte inesperada", no sentido de apurar responsabilidades. Alexandra Alves Baptista, grávida de 31 semanas, deu entrada na quinta-feira pelas 10:30 no hospital vila-franquense com tensão alta a 15/8, onde ficou internada, tendo sido a segunda vez que recorreu à unidade (da primeira vez sentiu também contracções) devido a problemas de hipertensão, causada por um alegado nervosismo resultante da morte de um familiar. Foram administradas duas injecções para controlar a tensão, após receber medicação oral que não surtiu efeito (em vez de baixar, subiu a tensão para 22/12). "Não sei que injecções eram, mas dez minutos depois a minha irmã começou a piorar, queixando-se de dores mesmo muito fortes na barriga e nos rins, estava cheia de suores, aos vómitos e a querer revirar os olhos", contou Inês Alves Baptista, numa altura em que a tensão já tinha descido para 10/5. Por parte do hospital, "não há uma relação causa-efeito", explicando que os problemas de hipertensão com alterações no sistema renal (eclâmpsia) são "frequentes" no fim da gravidez, mas neste caso o problema "desenvolveu-se de forma mais ou menos abrupta". Face ao estado clínico reservado, os médicos decidiram transferi-la para o Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa, a fim de retirar o bebé de dentro da mãe e colocá-lo na incubadora, já que o Hospital Reynaldo dos Santos apenas dispõe de incubadora a partir das 34 semanas. O agravamento da situação clínica obrigou os bombeiros a regressarem para trás [ quem deu a ordem?] de modo a antecipar a operação, conseguindo tirar ainda com vida o recém-nascido, que acabaria por morrer minutos depois. No momento da intervenção,"surgiu um problema porque ela estava com uma hemorragia hepática", contou Inês Alves Baptista, recebendo a informação do médico de que a sua irmã teria de ser reencaminhada para o Hospital Curry Cabral, para ser submetida a um transplante de fígado. Após dar aí entrada às 22:00 horas, acabaria por falecer meia-hora depois devido a uma hemorragia hepática e a uma eclâmpsia, segundo o resultado da autópsia, deixando duas filhas de sete e nove anos de idade. "Se ela estava com dores, se tinha a tensão alta desde há uma semana, porque não a mandaram logo para o São Francisco Xavier?", questiona a familiar, para quem "tem de haver um culpado". O Hospital Reynaldo dos Santos aguarda agora pelos resultados do processo de averiguações, que deverão ser conhecidos dentro de quinze dias, remetendo mais explicações para essa altura. Diário Digital / Lusa "
As reacções são de difícil controlo, mas de fácil explicação. Apesar de toda a gente o saber em teoria, ninguém está realmente preparado para os seguintes factos:
-Hoje em dia ainda se morre;
-Morre-se, mesmo que se seja criança, adolescente, mãe ou pai jovem, grávida, excelente pessoa, humanista, ...;
-Por vezes, por mais que essa pessoa seja (bem) assistida, morre na mesma.
Não sei o que se passou nesse Hospital e relativamente a essa senhora, mas sendo médico assolam-me inúmeras dúvidas quanto ao caso em particular. É uma situação delicada, para quem o dia-a-dia constitui-se de questões apesar de tudo parecidas,e que felizmente para todos nós acabam por resultar num "bem maior". Seja como for, sei o suficiente para, em atitude de "douta ignorância" dos factos, me escusar de falar sobre aquilo que desconheço.
Mas de duas coisas tenho a certeza:
1º: Devia ser considerado criminoso que, no rescaldo de uma situação traumatizante como esta, se entrevistem familiares que, por razões óbvias, não têm o estado de espírito ideal para emitir uma opinião ponderada sobre a matéria; esta é a altura inicial do luto, da negação e do inconformismo com a perda, e devia ser mais respeitado por aqueles que, com menores escrúpulos, imediatamente aproveitam as emoções mediatizadas para fazer subir um pouco mais o share da empresa privada para quem trabalham (ou as publicações, não interessa).
2º: A indignação e a desolação, são, mais que um direito, uma fatalidade para todos os que conheciam a vítima. O que não é sinónimo que exista, necessariamente, um "culpado".
Porque, e por menos preparados que possamos estar (cada vez mais) para aquilo que outrora era uma evidência, sim meus senhores, morre-se.
Morre-se sempre, e morre-se sempre mal.
O que distingue estes casos de morte precoce, no fundo, é que fica mais gente, e durante mais tempo, com saudades. É que não dá para desviar o olhar. É que não se trata de gente arrumada na prateleira dos excedentários da vida.
Aos 70 aninhos já ninguém se importaria muito com esta perda, em circunstâncias semelhantes.
Aos 80 até seria um alívio.
A morte é dura. E a vida não chega para nos prepararmos para ela, a nossa e a dos que amamos.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Sentidos da Longevidade

A beleza de uma criança a crescer. A feiura de um velho a perecer. A comoção perante uma criança triste. A evicção da solidão do velho. O fanado castiço. O desdentado embaraçoso. A atracção pelo potencial futuro. O desprezo pelo desempenho passado. A dor pelo sofrimento. A indiferença. O esforço altruista pelo bem-estar. O medo da despesa. O cheirinho a bebé. O fedor a velho. O encanto da aprendizagem. A intolerância pela demência. A birra tolerada. As manias insuportáveis. O palrar encantador. O guinchar medonho. ... O mundo é das crianças, e pelas crianças. Questiono-me frequentemente: será que sabemos o que dizemos, quando queremos ser velhos, muito velhos? Julgaremos nós sequer imaginar o que nos espera? Como será estar perante contemporâneos decrépitos, perante filhos com "mais que fazer", perante uma sociedade que nos olha como um encargo, e daqueles que urge aligeirar? Perante a fragilidade da idade acrescida da doença, perante a invalidez e a dependência, perante funcionários de lares e de serviços de saúde como os de hoje...?. No viés óbvio da minha visão destas coisas, julgo preferir morrer cedo, rodeado de gente que me ama e que vai sentir a minha falta, ainda enquanto elemento reconhecidamente útil da sociedade, e protegido por aqueles da indiferença. Não vejo empenho em resolver este problema. E para o resolver, seria preciso primeiro assumi-lo. Para o assumir teríamos que nos envergonhar, muito. Ainda nem demos o primeiro passo....

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Consciências

O que diferencia, perante a sociedade, aquele médico que denuncia má prática de um colega altruisticamente, em benefício exclusivo do mais fraco e do que menos possibilidades tem de se defender daquele que é mais ignorante, incapaz ou negligente, daquele médico que denuncia má prática de um colega mesquinhamente, por quezília, inveja e má fé, com o intuito único de chatear alguém de quem não se gosta por este ou aquele motivo, que nada tem a ver com a matéria usada para lhe estragar a vida (a denúncia)?
Nada, meus senhores.
Por isso evita-se. Por isso é raro.
Daí eu julgar ser preciso muita coragem para se denunciar um (mau) colega. Daí não ser preciso apenas "alguma" virtude para se enveredar por algo do género, mas quase um estado de excelência de alma que, pela raridade da coisa, não deixa de me espantar. O que só por si é pena e sinal dos tempos....
Assisti pois, em tempos, a algo assim.
Conheço o denunciante, e sei que o fez gratuitamente. Não a pedido dos doentes, que pelas mais diversas razões nem conhecimento têm da atitude dele. Não a troco de qualquer reconhecimento, que o não teve, e antes pelo contrário, passou a ser alvo, no mínimo, de desconfiança por parte de todos aqueles que consideram tal acto como uma traição ao sagrado princípio do "não denunciarás" ninguém da irmandade, por menos fraterno ou recomendável que seja. Não sem a ameaça mais ou menos velada de golpe igualmente forte, ainda que não movido por razões humanistas como foi o dele, para não dizer mais, ou menos....
Implicitamente leia-se: sob pena de se sujeitar a denúncias torpes e falsas. A muita areia para os olhos. Que em última análise resulta num baralhar de factos que confunde inevitavelmente quem não pertence ao meio nem conhece as pessoas.
Se a isso juntarmos uma progressão na carreira infinitamente menor do denunciante, quando comparado com o denunciado, o quadro ainda se torna mais perigoso. Ou mais confuso, para quem um dia leia as linhas e entrelinhas do sucedido.
O que esse meu bom amigo tem a ganhar com isso? Nada.
A perder, seguramente alguma coisa.
Se não contarmos com essa outra "coisa", periférica, que é a consciência. A dele.
Ele merece contentar-se com isso, com o prazer de se olhar no espelho. Pouca gente se contenta, pouca gente sequer se importa. E ele não terá muito mais com que se satisfazer no final desta história, creio.
Um grande bem haja, pois, a esse meu corajoso e anónimo colega. Na gratuitidade do seu acto, e na excelência da sua virtude.
Há ainda pessoas assim, meus raros, mas por isso mesmo ainda mais estimados, leitores: inspiradoras.