segunda-feira, 13 de agosto de 2007

A Metamorfose

Um dos fenómenos mais curiosos que me atropelaram na vida foi a metamorfose ocorrida há cerca de uma dezena de anos atrás. Eu era um aluno acima da média, os professores diziam que eu seria "alguém", e que tinha mérito. As notas eram boas, as perspectivas agradáveis, os incentivos qb. Tinha só que "continuar sempre a trabalhar". Acabou-se o liceu, e passei pelo fino crivo do numerus clausus das Faculdades de Medicina da época, que contrariamente ao que se julga, era de malha muito mais fina que o de hoje (acabavam o liceu mais alunos, e não entravam nas faculdades mais de meia dúzia de centenas, sendo que hoje há mais do dobro disso de vagas...; médias mais altas de entrada? Exames menos selectivos, pois claro). Os pais andavam orgulhosos. E continuei a trabalhar. Noutras faculdades passeia-se para passar e trabalha-se para brilhar. Nas de Medicina trabalha-se para passar, e brilha quem pode, e não podem muitos. Mais seis anos de Sacerdócio, com penitência reconhecida pela saciedade. Coitado, ainda estuda que nem um cão com esta idade. Coitado, sempre tão espertinho e a trabalhar tanto, e sempre na dependência dos seus progenitores. E finalmente acaba essa Via Sacra sem fim à vista. E dá-se a dita metamorfose. Uma minhoquinha esforçada? Meritosa? Inteligente? Acima da média? Trabalhadora? Qual quê, tornei-me numa bela borboleta corporativista, preguiçosa, desleixada e insensível para com (a sensibilidade de) terceiros, arrogante e privilegiada. O meu carácter preferido deste novo eu é sem dúvida o privilegiado. Dá-me a agradável sensação que a minha influência move montanhas. Que os meus professores deram-me boas notas com temor pela minha ira. Que entrei na Universidade após ameaçar desencadear um Holocausto se me negassem a ditosa. Que a acabei intimidando os académicos que me leccionavam as aulas acenando o Gulag. Dá a sensação que os meus pais não são as pessoas esforçadas e remediadas que sempre foram, e que não fizeram todos os sacrifícios que sempre fizeram para me facultarem as condições para todo este estudo, mas sim que afinal, e contra todo o conhecimento dos próprios e dos seus conterrâneos, pertenciam a uma qualquer Nobreza digna de "favores" de Estado capazes de imporem uma licenciatura destas aos seus descendentes. Quase que me dá vontade de pedir humildemente desculpas por ter sido tão indigno merecedor desta excelente condição inata. Até me esqueço que tive trabalho, e que tudo isto foi a custo de esforço. Mas aí entra então a tão propalada "arrogância". Arrogância de achar que estou onde cheguei por mérito próprio. Arrogância de julgar que precisei de ser melhor para estar onde muitos quiseram chegar e não conseguiram. Arrogância, por não estar humildemente grato por esta "dádiva" da sociedade à minha pessoa. Também sou arrogante porque uns quantos profissionais gostavam de ter sido médicos e não conseguiram. E como consegui, devo ter a mania que sou esperto. Também sou corporativista, agora. Ninguém me pergunta se concordo ou discordo desta ou daquela posição da "minha" OM. Ou de outras, o que até acontece com mais frequência, acerca das quais nem tenho sequer palavra a dizer (ministérios, ARS's, governos, de onde emana o grosso das orientações que, depois, acabamos por ter que acatar e seguir, pagando o preço dos erros de outrém, sendo que outrém nunca está "no terreno" para provar dos seus remédios). Sou corporativista porque pertenço "a eles". Sou mesmo, a bem dizer, "eles" (os privilegiados, os arrogantes, etc...). Esqueci-me de dizer que também sou rico. E sou rico porque tenho emprego garantido, porque tenho casa e carro (as notas de crédito todos os meses não passam de uma alucinação), e já nem sei por que outros motivos, mas que passam seguramente pelo facto da "Sociedade em Geral" não usufruir de boas condições socio-profissionais. O que faz de mim um chulo, e nem vale a pena discutir. Também sou rico porque meia dúzia de fulanos "da minha classe" têm uma privada florescente, e mais uns quantos conseguem avolumar quantias apreciáveis de horas extraordinárias. Não dou é pela partilha, mas enfim, nada disso interessa aos iluminados que, graças a Deus, povoam este país e banham-no com a sua imensa sabedoria acerca da realidade da minha existência. E também sou, finalmente, uma espécie de malfeitor, porque umas quantas abéculas da "minha classe" são corruptos (esse fenómeno que, como todos sabem, é inerente à Medicina), vendem remédios a troco de torradeiras ou congressos nas Maldivas, e exploram o povo doente das mais inusitadas maneiras, bem conhecidas de todos os espectadores diferenciados da nossa excelente, imparcial e anti-sensacionalista comunicação social. E esta foi a breve história da minha metamorfose, do que outrora fora uma minhoquinha virtuosa, para esta afortunada mas defeituosa borboleta que sou hoje....

8 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro placebo, por vezes não sei o que pensar...
Umas vezes considero que é mais um que faz parte daquilo que auto-define como "a minha classe".
Outras há em que o considero como um "verdadeiro cidadão". Não raras as vezes considero os seus posts de excelentes (este será um exemplo). Penso que poderiamos ser "camaradas de armas". Quiçá...

LN disse...

Kafka no melhor estilo?! ainda que trocando a barata... Não conheço o estilo do blogue o suficiente (passei acidentalmente e fiquei a ler) mas a sátira e o bom humor deste post são notáveis - incluindo a inversão dos valores, entre as aspas e os cuidadosamente escolhidos itálicos.
Ou muito me engano?!

Anónimo disse...

Sem dúvida dos melhores textos que li ultimamente....e leio muitos...
Parabéns

Anónimo disse...

Fico triste. Fico mesmo triste quando vejo que este post (vindo das profundas entranhas biliosas de um médico cujo dia não correu tão bem quanto desejava…) foi comentado e de certa forma aplaudido por… enfermeiros.
Entre a história dos “crivos finos” dos numerus clausus e a patetice “sou arrogante porque uns quantos profissionais gostavam de ter sido médicos e não conseguiram”. Para ser lacónico, entendi a sua tentativa neo-sarcástica que tentar roçar ligeiramente no humor irónico-depreciativo.
Nos anos 70 e vizinhança temporal, entravam alunos para as faculdades de medicina aos milhares. Um primo meu, aluno médio-bom, entrou juntamente com centenas de colegas. Não vi aí grandes “crivos”. O meu irmão entrou nos anos 80 para o curso de medicina. Bom rapaz, rapidamente se rendeu às “torradeiras ou congressos nas Maldivas”. Uma metamorfose inversa.
Hoje em dia, sim, há “crivos”. Ou se tem um montante considerável para colocar os filhos a estudar num colégio privado, onde se vendem entradas para o curso de medicina (ora aqui está um grande “crivo”), ou então, os papás ficam tristes porque o filho não foi para senhor doutor.
Relativamente ao comentário da LN, bom, essa colega (desculpe, ainda não me tinha apresentado mas sou enfermeiro) é sobejamente conhecida na nossa classe. Por muitos motivos, mas poucos são bons… Nem me lembro de nenhum assim de repente…. Muito autismo e surrealismo imperam naqueles neurónios.
Bom, isto tudo para quê? Porque me disseram que havia um blog que se chamava “assim-assim”, e que tinha uns posts “assim-assado”, e lá vim ler o que o “meritoso” “placebo” tinha escrito. Com todo o respeito, pois não sei a sua idade, (embora pela minha intuição devo ter mais “anéis de lenhina”, achei o seu post uma merda. Aliás, uma boa merda (há que distinguir da merda qualquer!)...
Não tive paciência para perder tempo precioso (como sabe o relógio da vida não pára!) a ler o resto do blog, mas também não necessito de ver mais. Assimilei rapidamente a linha matricial de orientação deste blog. Tem um traço fétido. Não gosto.
Há quem “coma” desta “pseudo-palha-metafísica”. Eu não. Por tantos motivos que nem me apetece mais falar deles. Você sabe. Enfim, em suma, por ver tantos “chulos” (termo seu! É plágio?) a foderem o SNS e a ignorar completamente o objectivo da vossa presença na vida profissional: os doentes, utentes, clientes, pacientes (como quiser!)….
Reflicta. Se achar conveniente, posso deixar-lhe aqui vários links de noticias e afins, só para lhe lembrar da chularia a que o meu amigo e colegas se dedicam. Não são todos, pois não.
Mas sabe tão bem quanto eu que os dias do “reinado médico”, vai terminando e que até os “gatinhos” abrem os olhos par a vida…
Só para que saiba, não virei ver se respondeu a este meu comentário, se o ignorou ou simplesmente o apagou. É indiferente. Pode “colonoscipizá-lo”, se assim o entender.
Um jornalista da revista sábado disse a um colega seu (aquele que tem a mania que explica!) que o blog dele era um “esgoto a céu aberto”. O seu não é muito melhor.
Boa tarde.

Anónimo disse...

Meu caro anónimo do 11 de Setembro (quiçá inspirado pela índole terrorista que a data representa)

É notória e triste a amargura em que vive, revelada pelo seu discurso esquizofrénico e pseudo-intelectual. Na verdade pergunto-me como um enfermeiro pode transmitir a esperança e apoio que os doentes tanto necessitam, quando vive num estado de alma como o seu. Desde logo começa com a variação de escrita entre um tom pseudo-eloquente e uma vulgaridade e ordinarice que toca no mais baixo do lodo. Segue-se uma demagogia comparável a princípios de extrema direita em que selecciona classes profissionais como de castas se tratassem, incompatibilizando qualquer sã convivência entre médicos e enfermeiros, como se a apreciação pelos últimos de um texto bem escrito (leia e releia porque pode aprender qualquer coisa), fosse qualquer violação de ideologia devido à profissão do autor. Poderia também questionar a raça e credo do mesmo, já agora, para que mais o entristeça que enfermeiros o apludam e comentem. Concordo que existem crivos e que a maioria dos médicos passa efectivamente por eles com esforço e dedicação. Tenho amigos com origens bem humildes que lutaram muito e de forma digna para serem os EXCELENTES médicos (e enfermeiros) que são hoje. O sr.lembrou-se de ir buscar uma ou outra excepção para retratar o todo. Se o seu irmão se rendeu a um sistema que condena, procure então resposta no seu próprio código genético ou na educação que os seus pais, pelos vistos, não souberam dar nem a um nem a outro, falhando no que toca a princípios como a honra, a integridade e a moral.
Nota-se ainda um particular atrito com a forma como outros enfermeiros não subscrevem a sua frustração e amargura. Veja neles o exemplo da racionalidade e objectividade que lhe falta. Aquilo que escreveu presta um péssimo serviço à enfermagem e aos bons enfermeiros que tanto o entristecem, por saberem digerir um texto bem escrito e por estarem em paz com a profissão que abraçaram (ao contrário do sr.). Para finalizar, e como estou à vontade visto que não vai voltar e muito menos responder (traduzindo os seus sólidos princípios democratas), aconselho-o vivamente a não abrir a sua boca para opinar sobre algo. Essa é que é verdadeiramente um "esgoto a céu aberto". E assim, em silêncio perante os outros, parecerá um sábio meditando....

Anónimo disse...

De facto o senhor do "11 de setembro" tem muita razão em muita coisa que diz, outras nem tanto.
Mas cada um tem direito à sua opinião e cada vez é mais raro alguém opinar exactamente o que pensa.
O "navarra", esse, parece-me que anda a treinar para "nobel da paz", mas apetecia-me dizer-lhe uma coisa navarra: cale-se!

Anónimo disse...

Sem duvida o melhor post....

Um aluno de medicina

Anónimo disse...

O post é bom, e é bom que se lembre dos sacrifícios por que passou para conseguir terminar o curso, e pelos outros tantos que fará enquanto exerce.
Que ninguém pense que são só rosas. Existem compensações boas, é disso que se trata.
Quanto aos crivos... acho que posso concordar com o Sr 11 de Setembro. Não é que tenha complexos de inferioridade, mas a verdade é que os meus colegas dispõem de recursos que eu nunca tive, e só por aí tiveram e têm a vida muito facilitada. E não estou longe da verdade se disser que 90% deles são privilegiados nesse aspecto.
É claro que isso depois se traduzirá na prática clínica no SNS... mas convém sublinhar que a maior parte da culpa de este não funcionar não é dos médicos.
Não quero ser nobel da Paz, tenho o meu bocadinho de humanitário e o meu bocadinho que gosta de torradeiras. Nunca gostei muito de extremos e, como tal, não acho que seja saudável fazer pender a culpa para uma família só ;)

Cumprimentos, e continuem. Gostei do blog e hei de voltar.