segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Um bom Testemunho sobre Eutanásia


Que se pode ler aqui na versão original.

Tradução tosca do post desse blog:



Le sourire de l’ange (o sorriso do anjo)

Habitualmente, não colocámos coisas pessoais neste blog. Mas isto faz parte de uma batalha pela liberdade. O meu pai morreu. Fiz um pequeno texto para o seu enterro, e aqui está ele, as palavras são as minhas armas. Que aqueles que puderem comover-se com elas meçam a sua importância.
(...) 
Auvers-sur-Oise, 27 de Junho.
Em primeiro lugar, obrigado pela vossa presença, nesta igreja de Auvers, que ele amou, pintou e copiou, na sombra inquieta de Van Gogh, do qual não tinha, e provavelmente ainda bem para nós, o génio, mas certamente uma parte da doçura e da ansiedade.
Morou durante muito tempo na casa aqui em baixo, cujo jardim subia quase até aos degraus da igreja, e foi a sua verdadeira última casa: um dia, há um mês atrás, ele esperava por um taxi para regressar. Ele via do seu jardim o sino, quadrado, imóvel, sereno, que acalmava a sua necessidade de linhas simples, calmas e ordenadas. Ele sempre preferiu pintar ruas ao invés de paisagens, e paisagens ao invés de pessoas. Talvez porque precisava de eternidade, ou talvez apenas porque mexia menos....
O papá era crente, mas não propriamente católico. Ia à missa para fazer prazer a Marie-Pierre, a minha mãe, porque ele dizia que se podia bem perder uma hora por Deus, e porque pensava in petto que nunca se sabe, é sempre importante ter dois ferros no fogo. Guy guardava da sua juventude, quando era pastor, uma grande ternura pela a noite. Dizia-nos que não devíamos ter medo da noite, que a sua estrela, a estrela do Pastor, a primeira a aparecer, estava lá para nos proteger. A lição perdura, eu espreito-a pela noite, quando saímos das luzes da vila, e falo dela aos meus filhos.
Com a doença veio o medo. Ele passou a temer a chegada da noite, já não contava o tempo em dias, mas sim em noites, aterrorisado pela chegada dos pesadelos, das recordações de mortos, da guerra, dos mil pequenos sofrimentos e dos terrores de infância que enterramos na nossa vida adulta, e que voltam para nos assustar no final. Ele nunca tinha falado disso, foi preciso esperarmos por estas últimas semanas para o descobrirmos, incoerentemente, com ele a falar desses fantasmas do passado enquanto tremia, fora de si, aterrorisado.
É uma das grandes lições  que retiro destes últimos dias, e que temos que perceber, nós e os seus netos: não se deve guardar no fundo de si próprio os nossos terrores minúsculos, eles devem ser falados, dominados, para nos podermos eventualmente livrar deles, ou pelo menos para podermos viver com eles. O papá não soube, e elas vieram à superfície quando ele já não podia lutar, e asseguro-vos que o medo que ele ressentiu foi horrível.
Não são coisas que se digam, mas quem o dirá então? A sua agonia foi terrível. Após 16 anos de doença de Parkinson, o seu corpo fechou-se sobre ele próprio, foi morto e enterrado num envólucro que já não era o seu. Temos que medir esta descida ao inferno degrau a degrau. A primeira vez que ele não conseguiu pintar. A primeira vez que ele perdeu o equilíbrio num escadote. A primeira vez que ele entornou o seu copo sem o conseguir apanhar. A primeira vez que ele não teve tempo de chegar à casa de banho para fazer as suas necessidades. A primeira vez que ele mexia demasiado para conseguir falar ao telefone. Doença horrível, que num mesmo dia faz com que se mexa ora demais, ora de menos.
Mas ele ainda não tinha visto nada. Depois teve que suportar a humilhação de usar fraldas, de ser despido pelos seus filhos, de se fazer limpar as partes íntimas por desconhecidos, de ouvir enfermeiras dizer-lhe ao ouvido "então, o Sr Johannès comeu bem? Acabou o seu iogurtezinho"? Mais ele se tornava acamado, mais as pessoas pensavam que ele era surdo e demente, o que estava errado. Uma das últimas vezes que ele conseguiu comer com colher, em boa verdade uma das suas últimas refeições (um blédina com gosto de brioche), perguntei-lhe se estava bom, se estava quente, todas essas coisas idiotas que se dizem quando damos de comer a alguém que não diz uma palavra há dois dias. Ele apenas me respondeu "arheu, arheu", imitando um bebé, com esse terrível sentido de humor muito negro, de gosto muitas vezes duvidoso, e que foi uma das coisas incontestáveis que ele nos legou.
Depois, claro, as coisas ainda pioraram. Ele queria morrer em casa, junto de nós. Retirámo-lo do Hospital, um sítio bem limpo, perto daqui, e o médico disse-nos: "sois admiráveis, agora desenrascai-vos". O papá queria morrer. Ele tentou uma vez, mas mesmo isso foi-lhe recusado. Ele já não podia falar, quase não conseguia abrir os olhos, mas ouvia e percebia tudo. Imaginem esse longo pesadelo, o que deve ser estar fechado no seu próprio corpo, num silêncio constrangido, de não conseguir mexer as pernas, de não conseguir comer, de já nem conseguir aspirar um pouco de sumo de laranja por uma palha, e finalmente de ficar com as mandíbulas fechadas para sempre, sem conseguirem abrir-se, terminando com a última réstia de contacto com o exterior.
E ele estava lá dentro. Duas semanas. A contar os dias e as noites. Dopado com morfina, acordando de sonos perturbados, à espera semi-consciente de ficar ainda pior. Eu sei que ele pensava "mas o que é que vocês estão a fazer"?! Fizemos o que pudemos, era o que lhe dizíamos. Por vezes aparecia-lhe uma lágrima, e nós chorávamos por ele.
Em França, a eutanásia é proibida. Fomos um dos últimos paises da Europa a abolir a pena de morte, seremos um dos últimos a legalizar a eutanásia, mas a contradição é apenas aparente. Não se morre de doença de Parkinson. O papá tinha um coração de ferro e pulmões de atleta, e poderia ter vivido um século. Em França não se abrevia o sofrimento, alivia-se. O papá não conseguia mais comer nem beber? Deu-se-lhe morfina em doses altas, e esperámos que ele morresse de fome e de sede.
Vocês conseguem medir o horror e a barbárie de tal coisa? Hipócrates teria querido isso? Que todos os que amavam Guy não esqueçam o seu calvário, ele aderiu a uma bela associação, e eu também, que milita pelo direito a morrer com dignidade. É uma bela iniciativa, mas que lhe foi interdita. A lei Leonetti de 2005 deu um passo em frente, mas um passo apenas. Que cada um de nós, com os seus meios, se batam para fazer avançar as coisas. Em memória do meu papá, mas também por nós, para precavermos o que o futuro nos reserva.
Agora ele finalmente encontrou paz. O papá era crente, meio budista. Ele acreditava em espíritos, na reincarnação, no anjo da guarda. Um dia no Hospital ele suplicou-nos que parássemos os calmantes, porque ele dormia sem sonhos e já não podia ouvir o seu anjo da guarda. Nos útlimos dias, a angústia tinha afastado o anjo. Estou bem certo que ele hoje paira à nossa volta, com um sorriso misterioso como aquele que se pode encontrar na catedral de Reims, e que o papá gostava tanto.
(...)

Bonemaison


Este é o nome do médico francês, agora internacionalmente conhecido por estar a braços com problemas acerca da sua interpretação do fim de vida.

Quer estejamos a falar do não início fútil de tratamentos que não melhoram o prognóstico global do doente, quer estejamos a falar na sua suspensão, ou na administração de paliação (e aí são domínios diferentes as doses e tipo de analgésicos e sedativos usados...), e por aí fora, a questão essencial vai sempre bater num ponto:
-Quem deve decidir, e como se deve decidir?

O caso desse médico em particular aparece extremado pelas notícias vindas a público (que devem ser vistas com as reservas que é sempre saudável ter perante exposições jornalísticas), tratando-se aí de um homem que aparentemente, perante casos de doentes terminais que recorreram ao serviço de Urgência onde trabalhava, terá assumido, não apenas a escusa de iniciar terapêuticas em sua opinião fúteis, mas ainda a administração activa, não apenas de sedativos ou analgésicos, mas também de paralisantes neuro-musculares (medicamentos que impedem o doente de respirar, levando à sua morte em poucos minutos).
Isto sem, aparentemente, ter conferenciado com outros colegas nem com os familiares.

É deveras impressionante, mas há uma nota digna de registo: nenhum familiar apresentou individualmente queixa, mesmo depois de ser ter feito a acusação pública (com base numa queixa interna de enfermeiros do serviço, que teriam testemunhado outras situações análogas deste homem no passado).

Isto tudo leva-me a concluir que, mais uma vez, o problema fundamental aqui é o da falta de comunicação, e de falta de padronização ou sistematização na abordagem de um problema que é transversal a todos os seres vivos: a altura em que se preparam para deixar de o ser.

Provavelmente, se as coisas tivessem sido discutidas com os familiares, não apenas na altura terminal em que o doente vai ao SU caquético, mas bem antes disso, e também com o próprio doente numa altura em que as suas funções cognitivas estariam intactas, provavelmente isto não seria problemático para ninguém, desde que devidamente enquadrado legalmente (e isso, enfim, é outro problema, a teimosia da estrutura legal se manter pesada em libertar as pessoas para decisões acerca do seu próprio corpo e da sua próprioa vida...).

Porque advém outro risco de ficarmos todos a pensar, sem mais, que é inadmissível um médico isolado tomar uma decisão como as que este senhor tomou: a de, por inércia na abordagem destas questões, nos vermos um dia na contingência de não estar suficientemente lúcidos para emitir opinião, e de ficarmos a sofrer de forma inadmissível por períodos mais ou menos prolongados de tempo. E atentem bem que é muito diferente agoniar-se (irreversivelmente) com dores ou falta de ar um dia, uma semana ou um mês....

Não me choca a réstia de "suicídio assistido" que este caso esboça (não sendo obviamente suicídio por não ter partido a intenção da parte do próprio doente, sendo aqui concretamente um caso de "homicídio por compaixão", na melhor das hipóteses).

Convém é que rapidamente possamos deixar explicitamente, por escrito, o que queremos que façam de nós nos diferentes contextos clínicios em que nos poderemos (e iremos) um dia encontrar, permitindo aos profissionais que nos façam tudo aquilo que desta forma autorizarmos.
Seria um primeiro passo, permitir este género de "testamentos".

Para um dia mais tarde torná-lo obrigatório (tal como o é o registo do nascimento de uma criança), por forma a não subsistirem dúvidas acerca do que qualquer um de nós queria (ou não queria) nessa fase incontornável (do fim) das nossas vidas.

O pior que pode acontecer, é fazermos de conta que isso é problema dos outros. Não é. Vai ser o nosso um dia, quiçã um dos que mais nos irá afligir, seguramente um dos que mais nos fará sofrer.

E são casos mediáticos como este que impulsionam quem lida com este tipo de doentes a nada fazer que os possa depois vir a tornar alvo da chacota mediática e social mais ou menos bem intencionada.
Não tenham pois qualquer tipo de dúvidas também acerca disso: nos próximos tempos, em França, os que sofrem vão ter o privilégio de ficar a sofrer mais tempo, porque ninguém vai querer correr o risco de ser acusado de ter "precipitado" indevidamente as coisas, por mais imoral que isso possa ser no outro extremo deste mesmo problema....

Pela enésima vez: está na altura de abrir a pestana!

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Respostas que nos Partem Todos






Na visita diária à enfermaria, eu, para um doente na sua cama, querendo soar mais entusiasmado do que realmente estaria:



-"Então, como é que está hoje"?



O doente, com ar plácido e resignado:



-"Deitado...".