sábado, 24 de abril de 2010

Medicina com Piada

Há coisas com piada em Medicina.
Num incontornável infantilizar das nossas pessoas, qual o médico que pode negar ter esboçado, pelo menos, um sorriso nos primeiros contactos com técnicas de exame tão respeitáveis quanto o toque rectal? Em pessoas bem humoradas como eu, colonoscopias, endoscopias digestivas altas, e coisas tão esotéricas quanto anuscopias, ainda aqui e ali me levam a ter que recorrer aos meus mecanismos de defesa, e que consistem naquele papel que desempenho a partir do momento em que visto a bata e que devo ter visto numa qualquer série de TV.
Imaturidade? Talvez, mas incontornável, escusam de disfarçar.
Aliás, porque razão não haveria de ser assim? Aquelas coisas que escondemos de todos durante tantos anos deveriam subitamente ser, de uma forma natural, expostos e do domínio público sem que isso nos afectasse?
Como explicar a uma pessoa do sexo masculino, que vai a um Serviço de Urgência com uma febre e dificuldade em urinar, que é pertinente enfiar-lhe um dedo no cu? E como orientá-lo na prossecução da técnica? Aceitam-se sugestões, mas a minha abordagem é aquela em que subentendo, pela minha firmeza nos actos, que aquilo é a coisa mais natural do mundo. Resulta: "bem, vamos ter que fazer um toque rectal para excluir que não tenha uma prostatite aguda. Faça lá então o favor de se ajoelhar na marquesa. Muito bem, tem que baixar as calças... as cuecas. Perfeito! (...)". A partir daí é fácil.... Está o doente ainda a tentar conceber o que será uma "prostatite aguda" quando lhe digo para se pôr de joelhos, está ele inconformado pelo facto de se ter lembrado de ir ao médico com aquelas queixas e já está com o rabo exposto, e quando começa a pensar seriamente em levantar-se e fugir dali, está o exame acabado.
Continuando na senda de desabafos relacionados com o tema, que atitude adoptar perante simulacros de torturas medievais, tais como endoscopias digestivas altas, em que num desgraçado perdido de vontade para vomitar por o estarmos a induzir com uma mangueira pelas goelas, através da qual, simpaticamente, injectamos quantidades industriais de ar no tubo digestivo que levam a arrotos incoercíveis? Ou as colonoscopias, em que a mangueira tem 2 metros e calibre respeitável, o doente está em posição ginecológica, vai tendo as dores decorrentes das angulações mais ou menos fáceis de se fazerem pelo cólon acima, culminando na saída, que todos tentam contrariar em vão, do ar que, mais uma vez, se injectou lá para dentro para se conseguirem ver as estruturas?
Caros leitores, lamento a desmitificação, mas tem mesmo piada.
Atenuantes?: calha a todos!

VIH

Já não está na moda, o VIH.
Já foram tempos, agora passou.
O VIH tem o condão de ser aquele vírus que, actualmente não matando de forma tão evidente, cada vez mais controlado com terapêuticas relativamente eficazes que transformaram a infecção em doença crónica (ou pelo menos muito prolongada), mantém uma vocação fracturante das vidas que afecta (e infecta).
Para quem começou a trabalhar no tempo em que a coisa significava uma sentença de morte, em gente até então saudável e muitas vezes jovem, ainda me vou espantando, sempre que encontro alguém quedo e mudo pela doença, com uma das suas complicações intercorrentes, e que em geral são apanágio apenas, hoje em dia, de indigentes toxicodependentes ou de surpreendentes primo-infecções (doentes que descobrem pela primeira vez que estão infectados).
Pergunto se desconhecem do carácter que actualmente se atribui à doença, mas eles até sabem, alguns inclusive desconheceram a fatalidade da coisa que ainda me assombra a memória.
Mas não estão assim apenas pelo carácter crónico da doença, deprimidos e sem vontades.
Estão assim pela culpa. Pelo descuido na contracepção física de uma aventura afinal mais marcante que o esperado, muitas vezes pela infidelidade concomitante, pela envergonhada (ou desavergonhada) homossexualidade assim punida, pelo contágio inconsciente de "inocentes", pelo divórcio, pelo afastamento de família e amigos, já não com medo do vírus, mas a maior parte das vezes pelo desprezo e repúdio das circunstâncias que levaram à sua aquisição.
É um vírus que já não mata tanto, mas que ainda vai moendo, deveras, muito boa gente....

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Pontualidade

Sendo médico, deveria começar por escrever: "o que é isso"?
Lamento muito ferir a sensibilidade dos purinatos holo-críticos da blogosfera, mas isto não é problema de médicos. "Também é" sim senhores, mas apenas pelo facto dos médicos serem portugueses, tais como vós, restantes criaturas que desprezam a função dos relógios.
Julgo aliás ser problema que se agrava de Norte para Sul.
Eu, que fiz a viagem há muitos anos atrás, constatei rapidamente que "jantar às nove" era maneira de dizer. De dizer, em primeiro lugar, que "a partir das nove" há a possibilidade de aparecer alguém. E longe de querer dizer que às nove era suposto estar, de facto, alguém no ponto de encontro.
A coisa agrava-se se o encontro marcado for: "então lá para as nove, nove e meia...".
E até um "o mais tardar às dez!" não é, como sabem, garantia do que quer que seja....
Chegar "a horas" implica correr o sério risco de, embaraçosamente, apanharmos as pessoas de surpresa ("eh pá, tu levaste-me mesmo a sério!"). Geralmente, apenas solitária espera (um dos motivos que me leva a não conceber deixar de fumar...).
A pontualidade não existe, e pronto.
Os fanáticos como eu, desenquadrados sociais e pessoas desagradáveis que se chateiam por tudo e por nada, estão condenados a sofrer em vão, incompreendidos e mal-sucedidos.
De nada adianta estar pontualmente às 8h30 no serviço, se a pessoa que está de saída, na passagem do "turno", ainda vai a meio das notas, e só começa a passá-lo a partir das nove. Até porque é a partir das nove que começam a chegar os demais colegas que deveriam entrar às 8h30....
Depois, querer que alguém chegue antes de, pasme-se, acabar-se o nosso horário num determinado sítio, é visto como costume exótico ao qual só esporadicamente se consegue atender. É pois "normal" esperarmos por alguém que deveria estar ali, ao contrário de nós que já não deveríamos estar ali, pelo simples facto dela achar que não é muito importante atrasar-se, ainda que atrase os outros por arrasto.
Mais: qualquer vestígio de má disposição da minha parte, já para nem dizer qualquer tentativa de reparo acerca do facto, é interpretado como indício de falta de companheirismo, até de profissionalismo. De profissionalismo, sim, porque numa fantástica inversão de culpas, já me acusaram de "ter a mania que tenho que sair quando acaba o meu horário", e de não possuir uma espécie de "espírito de sacrifício" e desapego pelo meu conforto, ficando pacificamente à espera da criatura que se atrasou.
Já dou por mim a pedir por favor, que as pessoas cheguem a horas (isso quando quero mesmo sair no horário que assino).
Eu nunca me atraso? "E o que tem o resto do mundo a ver com isso", respondem-me? Ando agora a chatear o pessoal com as minhas manias!?
Uma virtude, a pontualidade? Ninguém está lá para ver....
Como diz um bom amigo, o que mais chateia em ser pontual, é que os atrasados nunca, mas nunca ficam prejudicados. Já o pontual pode ser assaltado na esquina enquanto espera sozinho, pode ter que pôr a mesa ou ajudar na confecção da comida por esta ainda não estar pronta (e estar sem mais convivas, sem nada para fazer, junto de um também atrasado anfitrião), ou pode ter que acudir à paragem cárdio-respiratória de alguém por não haver mais ninguém no serviço, ou ter que receber os doentes todos do turno por, solidariamente, não querer obrigar aquele que está de saída a esperar.
Claro que, na hora da saída, o problema da pontualidade não se coloca tanto, a não ser àqueles como eu que, por malogrado fado, trabalham em serviços que prestam assistência contínua.
Não procuro compreensão, até porque o encadeamento de funções faz com que, fanaticamente, chegue sempre a horas na primeira "coisa" da manhã, mas na segunda já me atraso porque tive que esperar por alguém, e na terceira já sou praticamente um "português comum".
O que vale é que mais ninguém se importa....

domingo, 18 de abril de 2010

Nada como um Cigarro...

Um caso clínico....
Doente do sexo masculino, com oitenta e tal anos.
Dificuldade respiratória aguda, chamada a VMER, com paragem cárdio-respiratória presenciada, e revertida. Internamento na UCI, com choque misto após caracterização por cateterização da artéria pulmonar com Swan-Ganz, e síndroma de dificuldade respiratória aguda (vulgo ARDS), provavelmente secundários a pneumonia de aspiração. Aminas em altas doses, corticóides sistémicos, antibioterapia de largo espectro, manobras de recrutamento alveolar associada à ventilação protectiva que se sabe. Insuficiência renal aguda oligúrica, sem necessidade de técnica substitutiva da função renal (ou "diálise" contínua).
Recuperação notável em alguns, poucos, dias.
Dir-me-ão: é para isso que "tu" serves.
Quem me lê adivinhará a resposta: não sei bem....
Ao "acordar" para o mundo, alguns dias depois de ter adormecido (e, literalmente, "morrido"), surge-nos a realidade, desfasada daquela irreal semanita de 1º mundo com que brindámos o velhote.
E a realidade era uma família presente que se resumia a uma mórbil esposa, em vésperas de necessária importante cirurgia ortopédica e imobilização prolongada resultante, com doença cardiovascular grave a escurecer-lhe o prognóstico a curto-médio prazo.
Quem tomava conta da referida senhora era o velhote, que adoeceu como se viu, atirando-a assim ao cuidado de um qualquer lar. Isto foi precipitado pelo facto da casa deles ter ardido, provavelmente por incúria/incapacidade dela, no manuseio de um fogareiro tristemente necessário para um mínimo de calor nos frios dias que se viviam.
E ele vivia mal, com esta mulher doente, sem dinheiro, remediado como sempre (e só) soube ser. Teria alguma saúde, que entretanto se debilitou (não vos vou maçar com as sequelas). Adoeceu, acontecendo-lhe a última coisa que ele não queria que lhe sucedesse: a perda da independência. Já não tem casa, já não tem onde cair morto. Espera-lhe uma qualquer "instituição", à falta de filhos (que não seriam, por si só, solução para o drama, mas enfim...).
Daí a comovente tristeza da criatura, naquela sua cama de Hospital, a contrastar com o nosso entusiasmo ali ao lado, entretidos a comparar a mortalidade prevista pelo Apache e pelo SAPS, em desafio com a realidade se seguiu. Fizemos um "bom trabalho".
Se a vida fosse justa, teríamos gasto todos os milhares de euros que o SNS colocou à disposição do velhote neste seu internamento nos últimos 5 anos da sua vida, assim tivesse ele podido vivê-los em melhores condições que as miseráveis que tinha. E tê-lo-íamos deixado morrer em paz naquele dia, desta feita com mais dignidade, que se viu mais minguada ainda.
Mas a vida, desesperantemente, não é justa. Ele não tinha praticamente nada, e acabámos por obrigá-lo a viver agora sem absolutamente nada.
O irónico foram as dúvidas que se foram levantando ao longo de todo este processo de internamento. As questões sobre a indicação para toda esta "invasão" a que foi sujeito ("é para investir"?), as questões sobre o (mau) prognóstico, e as discussões sobre até onde era razoável ir, e a partir de onde seria "encarniçamento" terapêutico da nossa parte.
Correndo tudo tão bem, acabou tudo tão mal.
Na sua tristeza imensa, antes da alta, ele pediu-me um cigarro, a partir da sua cama. Não lho pude dar, ainda que me apetecesse fazê-lo. Chamemos-lhe o primeiro passo dos muitos que vai dar no mundo das coisas que ele deixou de poder fazer, por mais que lhe apeteça....