sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Urgências Paliativas

Neste país que às vezes nos parece de faz-de-conta, não são infrequentes os episódios de "Urgências Paliativas". Isto a propósito de mais um caso pessoal, recente.
A pobre alma doente estava metastisada até ao tutano, ou por outras palavras com os pulmões e fígado polvilhados de tumor, sem indicação para sequer qualquer tipo de quimioterapia (paliativa), já sob morfina e neurolépticos, destinados a aliviar a dor e a obnubilar o estado de consciência nesta fase, que se quer por razões óbvias o menos lúcida possível.
Enfim, e os familiares não conseguiam encarar a coisa (e esta era a verdadeira razão da vinda ao serviço de Urgência).
Perante uma colega menos profissional, talvez pelas demasiadas horas de trabalho prévias a toldarem-lhe o juízo, terão tido uma má experiência de atendimento (do tipo, pelo que me contaram antes que eu conseguisse interromper, "o que vem cá fazer a esta hora"? ou "e o que quer que eu lhe faça"?), e sobrou para mim a herança do caso de paliação na passagem do turno pelas oito da manhã.
Descobri que alguns dos filhos ainda não estariam "conformados" perante a mãe agónica. Que queriam que se fizesse "algo" perante aquela respiração de peixe-fora-da-água. Que não estariam em condições de a levar para casa "naquele estado".
Enfim, tudo coisas que o comum dos leitores deve achar natural, com fácil empatia perante o drama de se perder uma mãe, mas que deixa os nervos de qualquer profissional, ali presente para diagnosticar, tratar e orientar casos eventualmente urgentes, à flor da pele.
Num país a sério, essas almas doentes (não a doente propriamente dita, que lá foi fazendo bólus de morfina ao sabor da dor presumida e assumida, e do seu estado de consciência, num esquema aliás parecido ao prescrito pela oncologista que a seguia e tinha medicado, e bem) teriam já sido submetidas a um acompanhamento que lhe pusesse algum rumo nos neurónios, no sentido de se conformarem com a inevitabilidade, escusando-se a transportarem a mãe para um local hostil (tão apaziguado quanto um corredor de Urgência) perante profissionais pouco preparados para o adequado e digno encaminhamento de uma situação tal, como são, ou deveriam ser, os últimos minutos ou horas, em agonia, de uma vida.
Alguém já lhes deveria ter aberto os olhos, convencendo-os que o melhor que poderiam oferecer à mãe seria sossego, seria carinho, seria presença permanente, além dos indispensáveis fármacos que já possuiam.
Alguém lhes deveria ter dado um abanão, e dizer-lhes que era altura para crescerem, da mesma forma que se presume que a senhora doente teria tido atitude adulta sempre que os meninos se encontraram doentes no passado.
Ou seja, alguém lhes deveria ter encaminhado o luto, de alguma forma, para que o essencial, e o essencial era o conforto da pobre alma doente, fosse respeitado, preservado e considerado acima de qualquer desconforto egoísta, de sentimento de perda egoísta, ou de saudade que se quererá, pela amostra, rapidamente esquecida.
Eu tentei, e não consegui. Aqui e ali, ao longo do dia, vislumbrei que houvesse alguma lufada de lucidez em alguns dos familiares, mas nada feito, na hora da verdade, entenderam que não havia "condições" para a afastarem daquele local, seja lá o que isso for (um sorriso? um flashback? enfim, seguramente algo do domínio da ficção, à qual toda aquela gente estava ainda demasiado ligada, e que infelizmente a realidade teima em desprezar).
Neste país, não se sabe viver com a morte dos próximos. E, mais grave ainda, não se respeita o próximo nesse contexto, tratando-o como um objecto que se quer higienicamente longe da vista, e por isso longe de casa, pouco importando que para isso fique numa solitária e abandonada cama de enfermaria, na confusão de uma maca num serviço de Urgência ou num qualquer aterro sanitário.
A senhora lá morreu, uma longa dúzia de horas depois, sozinha, num quartinho onde estava outra senhora, igualmente agónica, que aliás também faleceu pouco depois. Sedada e analgesiada, tanto quanto me foi possível fazer nos intervalos da confusão, costumeiramente muita.
A família lá estava, algures, bem longe dela.
E ficou extremamente grata pela "sensibilidade" que eu tinha demonstrado perante o "problema" (o problema deles, entenda-se), quando lhes transmiti o inevitável desfecho.
E eu, cansado ou distraído depois de 24 horas seguidas de trabalho, por pouco ia ficando satisfeito com o "elogio"....