sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Paternidades

Confronto-me por vezes, sobretudo desde que comecei a dar os primeiros passos nesta profissão, com a assunção, por uma parte não desprezível da comunidade, que tenho funções inusitadas de paternidade sobre umas quantas almas, apesar do dismatch (assegurado) de ADN.
É assim por exemplo que o diabético chega sorridente à consulta, ainda mais gordo que o costume, com todos os parâmetros a assegurar descontrolo da doença, com inobservância manifesta de todas as recomendações, com o ar travesso do menino que chumbou no teste e nem quer saber.
Ninguém se interroga acerca da pertinência de tal pessoa estar a ocupar um lugar numa consulta onde poderia bem estar outro doente, mais interessado em seguir as indicações que nela são proferidas, e em controlar a sua doença, ao contrário da deste exemplo.
Aliás, alguns, em boa verdade, interrogam-se. Um Diabetologista francês disse, em conferência bem contestada, que no final das suas consultas dava indicação aos seus doentes para voltarem a partir de 3 meses daquela data, desde que pesassem menos dois quilos. Muitos consideraram tais palavras uma profanação da santidade da profissão... mas adiante.
Acima de tudo, questiono-me, e não raras vezes pergunto: qual a finalidade da presença daquela alma ali? As respostas, quando as há, variam dentro de um vasto e paranormal leque.
Também é assim, noutro exemplo, que o bêbado chega violento à Urgência, geralmente porque foi encontrado a fazer desacatos num local qualquer, e, pela alteração do estado de consciência da criatura, alguém julgou ser aquele serviço o indicado para o mesmo "curar" a bebedeira. Ou simplesmente porque alguém bebeu demais e está "sonolento", ou "enjoado" (não se riam, sucede mesmo isso, e com regular frequência...).
Não parece interessar nada que naquele serviço estejam pessoas a desempenharem supostamente bem a sua profissão, e que dispensavam os insultos, as grosserias ou simplesmente a perda de tempo com o energúmeno.
Não parece interessar nada que naquele serviço estejam pessoas a precisarem realmente de cuidados médicos urgentes, secundários a acaso maior que o entornar voluntário de excesso de álcool pelas goelas abaixo.
Não parece interessar nada que o alcoólico patológico seja responsável pelo estado em que se encontra, e que por isso deveria continuar a ser responsável pelo que faz no estado de inconsciência que ele próprio induziu. Poderia ser que no futuro, e proactivamente, ele pensasse duas vezes antes de voltar a ficar num estado semelhante.
O mesmo se aplica a um sem número de situações, em que se assume que a pessoa doente (muitas vezes a começar pela própria) não é responsável pela sua irresponsabilidade, e por isso carece de cuidados permanentes deste manã de bondade e paternalismo que é a figura clássica do médico dos dias que correm.
Julgo que só tínhamos a ganhar se passássemos a tratar pessoas que querem colaborar no seu prórpio tratamento, e na cura ou prevenção da doença.
Sou a favor do controlo de observância aos tratamentos.
Sou a favor da prevenção da aterosclerose em pessoas interessadas em prevenir a aterosclerose, e não no tratamento do "colesterol" de fumadores, e não no controlo da hipertensão de diabéticos indisciplinados.
Sou contra o lema: "mais vale prevenir o que se pode". Porque o lema sai caro, em recursos, em medicamentos e em acessibilidade aos cuidados por parte daqueles que têm uma ideia mais clara do que pretendem fazer com a sua própria saúde.
Ou seja, todos têm o direito, e os profissionais de saúde tem o dever, de informar a população para que se inteire das consequências dos seus comportamentos e status de risco.
Mas tratar, só se deve tratar quem quer.
E quem quer, trata-se.
Quem não quer ou quem não se trata, mesmo quando nem parecer saber que não se quer tratar, não se trata.
Sob pena de se perder, um dia, o direito à maioridade.

2 comentários:

naoseiquenome usar disse...

Concordo que o doente tem que assumir a sua responsabilidade.
Não se pode continuar a ter (e a exigir) uma visão meramente paternalista do exercício da Medicina (entre outras).
Mal grado, temos ainda um estrato de população tão pouco informado e instruído, incapaz de assimilar (por si e às vezes pelos familiares) as orientações, que, a "coisa" tem de ser vista caso a caso.

Um abraço.

Anónimo disse...

Bebedeira não é doença é consequencia! - frase típica dos tripulantes de ambulância.
As pessoas têm de, sem dúvida, começar a tomar consciência mas como lhes podemos exigir que o façam se é o próprio Instituto Nacional de Emergência Médica que os manda transportar?
Já para não falar dos restantes dias da semana, se verificarmos o número de saídas à Sexta e Sábado à noite podemos concluir que tivemos 2 ou 3 casos efectivamente urgentes. Como cidadã fico irritada com estes números, até por muitas outras razões.
Por onde tem de começar a sensibilização?

Cumprimentos

Luz