sexta-feira, 26 de março de 2010

Orgulho

É uma força poderosa, o orgulho, quando sinónimo de esforço, mérito, carisma, espírito de superação.
Também pode ser, às vezes até ao mesmo tempo, uma força desastrosa, quando sinónimo de vaidade, autismo, teimosia no erro, incapacidade de "insight".
Isto tudo existe muito no meio em que gravito, e em mim próprio. E hoje, foi uma chatice....
Li algures que a ironia deve, ao longo dos anos, substituir a fúria na lida com as contrariedades. É seguramente mais são.
Só me resta esperar que seja um traço com mais de adquirido do que de constitucional, sem deixar de ser genuíno (ou seja, sem perder eficácia).
Bem, ainda assim é bom de se ver que há sempre mais alguma coisa a fazer para ir melhorando, assim não hipotequemos a nossa dignidade nem fechemos em demasia as portas que nos vão surgindo no caminho.
Lamento, mas há dias em que os textos saem mesmo assim, indecifráveis.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Carne para Canhão

Uma das minhas maiores surpresas, enquanto médico, foi descobrir que as queixas que se ouvem nestes noticiários terem, afinal de contas, boa razão de ser.
Poucos de nós na profissão não teremos chegado à mesma conclusão: o povo é mesmo carne para canhão.
A novidade é que não é apenas por culpa dos meus colegas menos jeitosos. É sobretudo por culpa do próprio povo (lá está ele, pensam os meus poucos leitores...).
Não se trata aqui de um acto de sacudir a água do capote, meus senhores, ficariam impressionados, partindo do pressuposto que quem vem ler um blog tem um mínimo de literacia, com a quantidade de gente que aparece nas consultas de Urgência ou de Especialidade com sacos cheios com incontáveis caixas de remédios, os quais são tomados mais ou menos aleatoriamente, os quais estão por vezes em duplicado pelo facto de terem nomes diferentes (e as pessoas não conseguirem perceber que a substância activa é a mesma), enfim, os quais são sempre mal usados, num potencial iatrogénico geralmente nada desprezível.
Mas isso, de tão comum, é já o que menos me choca: é rotina.
O que é verdadeiramente surpreendente é a quantidade de gente que toma esses remédios sem saber para quê ou porquê, desconhecendo as doenças às quais se destinam e das quais, presumivelmente, padecem. E que parecem ser problema, não delas, mas do prescritor.
Qualquer interno sabe bem, desde muito cedo, que neste desgraçado país, a melhor maneira de saber as doenças de determinada pessoa é, não o aparente lógico acto de lhe perguntar directamente, mas sim olhar para os remédios dele (o tal "saco") e perceber ao que se destinam.
Não duvidem que é verdade.
E, rebarbação suprema, qual não foi o meu espanto, incessantemente repetido, quando descobri que imensas criaturas apresentam cicatrizes em diferentes porções do corpo, sem saberem exactamente, ou sequer aproximadamente, o que raio lhes extraíram, ou repararam, ou seja lá o que for que lhes fizeram numa Cirurgia, que à partida se pensaria que suscitaria a curiosidade do operado.
Enfim.... É a clássica resposta de 50% dos meus doentes na sua 1ª consulta:
-"Então, que queixas motivam a sua vinda a esta Consulta"?
-"Não sei, o meu médico de família é que me mandou...".

segunda-feira, 22 de março de 2010

Evidências

Parece que se "descobriu", através de um estudo feito em Portugal (Escola Nacional de Saúde Pública), ainda que retrospectivo e com algumas nuances metodológicas, que se morre mais nos hospitais à noite, aos fins de semana e feriados.
Nada contra, bem pelo contrário, mas perdoem-me a ingenuidade, desconhecia que se tratava de "pólvora" bem debaixo do meu nariz estes anos todos.
Sempre me pareceu óbvio, e aceite (diferente de aceitável) que isso sucedia. E arrisco: também se morre mais à sexta-feira à tarde, a nas alturas dos grandes congressos nacionais e internacionais das especialidades, nas respectivas enfermarias. E, claro, nas férias grandes, e por alturas de Páscoa e Natal. Já para não falar em fins-de-semana prolongados por feriados e pontes.
Chocados? Bem, fico sempre babado ao dar fracturantes novidades polémicas: é verdade, os médicos não trabalham nessas datas, com a excepção dos serviços de Urgência (não apenas de atendimento às do exterior, mas também as diferentes variantes de "Urgência Interna" que vão existindo). E a generalidade não tem horário nas tardes de sexta-feira, noites, fins-de-semana e feriados/pontes. E têm férias, que tentam concentrar nas alturas das férias... dos filhos (ah, pois é, muitos também têm filhos...).
Ainda arrisco, antes que outros me voltem a roubar boas ideias: as entidades prestadoras de serviços em geral funcionam pior nas alturas em que os seus recursos humanos não estão... a trabalhar. Pelo menos em full-time.
Dir-me-ão talvez que, tratando-se-de vidas humanas, tal é inaceitável.
Em primeiro lugar, não é.
Mas tal como tantas outras coisas, é passível de melhoramentos, ou optimizações. A começar pelos modelos de triagem de gravidade dos doentes, e sua adequada sinalização, pela criação de infra-estruturas suficientes de Cuidados Intermédios e Intensivos, com staff adequado (suficiente e competente), e por uma gestão cuidada dos recursos humanos, com a sua distribuição por todo o horário semanal, e, quem sabe, pelo sábado de manhã (pelo menos). Mas não será nunca como uma altura de "horário pleno normal de funcionamento".
O problema sempre foi óbvio, e agora é conhecido do "grande público" (é o mérito do trabalho).
Resolve-se muito facilmente, com dinheiro (que as infra-estruturas e meios humanos costumam custar...).
Pode ser que haja outro "Efeito de Gripe A"....

quarta-feira, 17 de março de 2010

País das "Causas Fracturantes" da Treta

Aborto:
-Afecta alguns (algumas mulheres menos "amigas" de anti-concepcionais, por ignorância ou seja lá o que for);
-A gravidez não é geralmente doença, e quando o é, tem mecanismos de acompanhamento apropriado;
-Criou-se (a meu ver bem) uma Lei a despenalizá-lo;
-Quem é a favor e/ou precisa aborta, quem não é a favor ou não precisa não aborta;
-O Estado financia (a meu ver mal) o aborto.
Casamento "Gay":
-Afecta algumas (poucas) almas (aliás, penso intrigado: quantos de nós conhecem um caso que seja? Serei eu que vivo numa garrafa?);
-Não é doença;
-Criou-se uma Lei que, em princípio, irá permitir o respectivo circo;
-Quem é a favor poderá "casar-se" oficialmente; quem não é, também não interessa nada....
-O Estado, enfim, não tem mais que fazer.
Suicídio Assistido/Eutanásia/Cuidados Paliativos, domiciliares, alargados a toda a população:
-Vai afectar quase todos (excepto as abençoadas "mortes súbitas");
-É uma questão inevitável;
-Não se esclarece em sessões ou debates públicos, nem sequer praticamente se discute o tema;
-Não está legislado (quem se quiser matar, e o puder pagar, que vá para a Suíça);
-O Estado, obviamente, não financia o que se recusa a sequer reconhecer, apesar da universalidade do problema.
Um dia, ficaremos todos (ou quase, com a tal excepção) doentes.
Vamos querer curar-nos, e se tal não for possível, pelo menos estabilizar a doença com o menor handicap possível.
Se, para nosso desespero e infelicidade, o caminho for (e sê-lo-á, seguramente, a dada altura) inexoravelmente o caminhar a curto prazo para a agonia e morte, não teremos o direito a alguma dignidade, nessa recta final?
Seja lá o que isso for para cada um de nós?
Se eu não quiser ficar dependente de terceiros a apodrecer lentamente, não terei o Direito ao suicídio assistido, na altura em que eu julgar estar em condições para o fazer com dignidade?
Se eu quiser seguir o caminho até ao fim, não terei o direito a fazê-lo com uma paliação realmente eficaz, e não esses projectos de Cuidados Paliativos que, sempre bem intencionados, mas geralmente insuficientes, por aí vão proliferando, ao sabor das pessoas que se encontram em cada ponto geográfico, das suas sensibilidades, capacidades e meios?
E se eu não concordar com nada disto para mim próprio, pelas minhas razões pessoais (morais ou outras...), não terei o Dever de deixar cada qual decidir pela sua cabeça? Ou o Dever de conceder o Direito de cada um optar pela sua cabeça?
O facto de bons cuidados paliativos serem fundamentais não impede que se permita o livre arbítrio, perceba-se, de CADA UM DE NÓS, ACERCA DE NÓS PRÓPRIOS, sem afectar terceiros!
Será que vou ter que esperar pela possibilidade legal de congelar os tomates, com financiamento do Estado, para ter a certeza que vou poder ter acesso àquilo que entendo ser uma morte digna?
Já não falo da minha paciência, essa sim, desde já agónica e a precisar de paliação, com esta triste condição de viver entre mentecaptos demasiado entretidos com a artificialidade das suas auto-limitadas vidinhas, para conseguirem acautelar a inevitabilidade do sofrimento que um dia virá, mas que preferem ignorar nesse delírio de imortalidade que nos infecta a quase todos.
Eu cá, por outro lado, tenho Know-how, e amigos que me poderão valer.
Vocês, os "outros", ponham-se a pau. Pelo menos enquanto são cidadãos dignos de "investimento", uma vez que depois, será demasiado tarde....

Investimento vs Poupança

-Colega, tenho aqui este senhor que está nas últimas....
-Humm. Mas é para "investir"?
-Enfim, isso não sei bem... ele nunca chegou a falar, já vinha mal, e empregada do lar já não estava quando o chamámos para os balcões da Urgência....
-Então?! E não ligaram para lá?
-Não deu tempo ainda, ele tem estado cada vez pior, e agora ou entuba-se e ventila-se, ou....
-Entubar?! Calma aí, o que dizem os episódios anteriores de Urgência? Não dá para ver no computador?
-(...) Humm, há aqui um colega que falou em "demente" e "acamado", mas não sei se foi no contexto daquela vinda à Urgência, ou se será sempre assim....
-Deixa ver...! Olha esses pés, esse homem não anda há anos! Vira-o lá... olha! Todo escariado no sacro, trocânteres! Até nos calcâneos! Pffff, nem pensar em entubar este gajo, fico lá depois com o "Toyota" a ocupar-me um ventilador....
-Bem....
-E se depois me chega alguém com "potencial", que também precisa? Alguém em quem realmente é para "investir"? Vê lá, se o levo para cima, depois não me peças para tirar de lá este mono! Terás que amanhar-te a arranjar-lhe vaga noutro sítio, que eu só tenho uma e, se a ocupares com este, para mim é igual, mas depois é que podem vir a ser elas, e ficas tu com o menino nas mãos!
-Compreendo.... A questão é se este tipo realmente não tem vida de relação, ou se até tem algum acompanhamento, alguma razão de viver....
-(risos!) Deve ter deve.... O velho está num lar, está todo podre de nem o virarem como deve ser, já não se mexe de certeza absoluta para lado nenhum, caga e mija para a fralda, deve ser "demente" como alguém já escreveu.... Achas que alguém se preocupa com ele?! Olha lá para o Homem! Ele respira, e pouco mais, e já não é de hoje....
-És capaz de ter razão.... Olha, desculpa lá, mas são sempre decisões difíceis, e nada como partilhá-las com alguém, sabes como é. Vou metê-lo para aí num canto, com ONR (Ordem para Não Reanimar).
-Faz isso, e não te esqueças da morfina.