quinta-feira, 22 de maio de 2008

Vocação

Ainda hoje não sei bem o que é isso.
E seguramente que desconheço a rica semântica de que se reveste, para cada um que usa a dita palavra.
Hoje falo despreocupadamente sobre o tema, que em tempos chegou a ter o condão de me inquietar.
-"Deves seguir para a profissão para a qual te sentes vocacionado", diziam-me nos meus tenros 18 anos de idade. -"Não te metas em Medicina se não te sentires vocacionado", acrescentavam.
Eu, desesperadamente, sentia-me vocacionado a fazer uma boa partidita de futebol, a um jogo do equivalente de playstation da época, a ver um bom filme de cinema e a passar o dia na praia.
À falta de melhor chamamento, segui o delírio da minha mãe, de origem cronológica incerta, mas que já remontava há vários anos: "ele sempre quis ser médico". Sempre era melhor que nada.
Na faculdade alguns colegas reiteravam que sem vocação, a "coisa médica" tornar-se-ia insuportável. Julgo que os tratados que me davam, nos primeiros anos, para eu treinar a recitar de cor, não ajudavam ao desenvolvimento de um sentimento de aproximação com a "arte". E lá fui decorando, desapaixonadamente, o esfenóide, o canal inguinal, a Fisiologia respiratória, e outros temas que tal.
No meu 4º ano da faculdade entrei pela primeira vez na minha vida num Hospital, e da melhor maneira (quero eu com isto dizer que a olhar para uma cama, ao invés de estar deitado numa). A coisa melhorou, o interesse começou a nascer, e vibrei com o que talvez tenha sido o meu primeiro soslaio de "vocação", passe a eventual heresia pela qual antecipadamente me desculpo perante os experts do tema.
Mas logo me puseram no lugar. Naquela fase, vocação seria coser cabeças, enfiar dedos em série nos rabos dos doentes e colher sangue para análises. E por aí fora. Não me apetecia nada, e queria-me parecer que iria ter tempo para aprender essas coisas todas no futuro, que ainda se afigurava longo naquela fase.
Atalhando, lá segui o trajectozinho que alguém determinou que seria o dos médicos em formação neste país, e não estou nada desiludido com o resultado final.
Finalmente vocacionado? Eu simplificaria dizendo que interessado pela matéria, curioso pelas doenças, e preocupado com os doentes. Se por vocação ou por profissionalismo, francamente não sei.
Desconfio que a diferença, a existir, não seja grande.
Também desconfio que a vocação, neste país e neste contexto, é bem capaz de estar arreigada por pessoas que querem poder seguir um curso por outro critério qualquer, que não o de estudar e saber mais que os outros.
Desconfio que aos 18 anos estamos ainda todos "vocacionados" a ser futebolistas profissionais, repórteres desportivos e herdeiros de milionários (dirigindo-me para a irmandade masculina, já que as mulheres são um grupo à parte nessa fase, que eu nunca me atreveria a caracterizar).
Bom, e o post já vai, como habitualmente, excessivamente longo. Terminaria dizendo que o conselho que darei aos meus filhos, quando os confrontarem com as suas enigmáticas e/ou inexistentes vocações, será o de escolherem o que lhes parecer melhor, e de serem bons no que escolherem.
E o resto, com todo o respeito, parece-me canto lírico....

quarta-feira, 21 de maio de 2008

A Pele de Cordeiro

Desconfiem do Cordeiro. Não é tão fácil quanto parece, o cordeiro é simpático, o cordeiro é agradável, o cordeiro é tranquilizador. Alguns médicos são cordeiros. Uma virtude, se à "imagem" juntarem igual competência. Mas não é desses virtuosos que eu quero falar aqui (os verdadeiros cordeiros), nem nos cordeiros que parecem lobos (esses poderei abordar, só porque são interessantes, noutros "post"). É nos lobos disfarçados de cordeiro. Irritam, pela negligência ou dolo de que se reveste a sua prática, pela hipocrisia que materializam. Esses são capazes de ver morrer um desgraçado à sua frente, sentenciar uma decisão duvidosa de não-reanimar, ou pior ainda, de nem sequer tratar aquilo que é tratável, e depois com a maior desfaçatez, de fácies grave, anunciar à família que se fez tudo e mais nenhuma opção restava. São aqueles que quando chega o doente complicado desaparecem, atarefam-se subitamente com outra coisa, deixando a fava para quem tiver algum brio e/ou vergonha na cara. São aqueles que perante o sofrimento alheio ignoram, desvalorizam, olham para o lado ou transferem para longe da vista. São aqueles que não fazem (porque nunca "calha", estando sempre "potencialmente" disponíveis), mas estão sempre dispostos a criticar aqueles que acabam por fazer muito mais do que deveriam, pior do que fariam se fizessem apenas aquilo a que são obrigados. Em suma, são aqueles que descobriram que a melhor maneira de não errar é não fazer, e deixar para outro resolver. E quando ninguém mais existe para desculpabilização própria, continuam ainda assim a não fazer, e profissionalizam-se na arte da consolação e da ilusão de todos aqueles que podem representar uma ameaça às suas ridículas máscaras de médicos de primeira água. Todos: os próprios doentes, os familiares, os colegas e as chefias. Isto seria um fait divers se, em Medicina, não significasse um comportamento criminoso, uma tortura para os desgraçados que, fragilizados, caem nas mãos de tais torcionários por omissão, cumplices da doença e do sofrimento. Gostava de dar uma fórmula para se detectarem essas criaturas. Mas é difícil. Confrontem aquilo que vos é dito com informação científica, hoje em dia todos sabem usar minimamente o google. Questionem o que vos é apresentado como inequívoco ou dado adquirido, esperem pela resposta e confirmem-na. Ou, à falta de melhor, desconfiem menos daquele que tem olheiras, que está mais cansado e se calhar com menor paciência para ser simpático. E desconfiem mais dos sorridentes, dos bons conversadores, dos que posam a figura do "imaginário médico" que há em cada um de nós em todos os seus actos. Pensando melhor, conheço exemplos de ambos os lados da barricada para cada um desses fenótipos. Em última análise, boa sorte!

terça-feira, 13 de maio de 2008

Os Fulanos Oftalmologistas que Vêm de Fora

Reflexões breves: -1ª) Acho preocupante a dimensão do problema da falta de soluções do SNS para doenças corriqueiras (vulgo cataratas, neste caso), que como se vê até podem ser resolvidas "a granel" por um médico qualquer com disponibilidade para isso; -2ª) Acho triste que a reacção da classe em geral seja reveladora de um brutal orgulho ferido, dedicando-se a encontrar o "gato" da história, que antes prima, e acima de tudo, pela espectacular solução de um real "gatão", que era o problema que afligia tão numerosa população; -3º) Acho triste que não se explique o porquê de esta gente toda ter sentido a necessidade de recorrer ao tão publicitado estratagema. Não há Oftalmologistas que cheguem neste país, adstritos ao SNS? Estão a tratar coisas mais importantes e descuram estas "corriqueirices" de cataratas? Não têm tempos operatórios suficientes? Há interesses obscuros e/ou um problema laxismo da referida sub-classe, que leva a esta falta de produtividade? -4º) Acho vergonhoso que ninguém, nos cargos relevantes representativos dos médicos e relativamente a esta situação, não padecesse deste autismo tão característico quanto contra-produtivo e fomentador da falta de credibilidade que cada vez mais nos aflige. Nunca mais nos convencemos que as pessoas não são (completamente) estúpidas, que actualmente somos sempre culpados até prova em contrário, e que a inversão desta realidade só se fará quando discutirmos aberta e descomplexadamente os problemas, e começarmos a separar, entre nós, o trigo do joio.