terça-feira, 25 de setembro de 2007

Desabafo 2

Ao contrário do que por vezes se espera, os médicos são simples humanos, sujeitos por isso às contingências das imperfeições próprias desta condição. Como tal, têm também superstições. Há uma superstição relativa a doentes que são enfermeiros ou médicos ou seus familiares. Dizemos na gíria que isso constitui um factor de risco e acreditamos que esses doentes têm ad initio uma maior probabilidade de ter complicações graves da sua patologia. Outra superstição diz respeito aos doentes que, ante a angústia e o mau-estar da sua doença, seja ela um simples resfriado ou uma pneumonia grave, deixam escapar as infames palavras “eu vou morrer”. Mais que manifestações de desânimo, acreditamos que essas palavras são verdadeiras e enexoráveis premonições.

Acho que estou perto de criar uma nova superstição pessoal. Esta está relacionada com os doentes cujos familiares obrigam os bolsos das lapelas das nossas batas a engolir indigestas notas. Acontece que no contexto do estudo que foi feito a propósito do dito síndroma febril se descobriu um cancro no rim... Doravante só usarei batas sem bolsos.

Desabafo 1

Vivi há tempos uma das mais deprimentes experiências com familiares de doentes. Tive um doente internado com um síndroma febril indeterminado a quem se colocou a hipótese diagnóstica de endocardite. Após explicar à família que isto poderia justificar quer a anemia, quer a febre que ele carregava aos ombros há cerca de mês e meio, quer o estado consumptivo “que o tem deixado só pele e osso” – diz a esposa – encontrei-me subitamente actor num quadro verdadeiramente surreal. A esposa do doente abre pronta e determinadamente a carteira de onde, em décimos de segundo, saltou uma nota de 20 euros. Enquanto balbuciava uns atrapalhadíssimos “não, não, deixe estar, não é preciso...” e esbracejava freneticamente como se, sem saber nadar, tivesse caído no meio do oceano, tentando defender-me da mão portadora da nota que avançava ameaçadora, a esposa continuou determinada, impingindo-me a nota pelo bolso da lapela da bata adentro. Simultaneamente pediu-me “ tome-me lá conta do homem...”.

Senti-me algo que não sei definir, mas que se situa em terra de ninguém, algures entre a vítima de suborno e a puta de esquina. Não tenho dúvidas dos bons intentos da senhora. Interpretei o gesto como sinal de gratidão por se ter chegado a um diagnóstico e talvez pelo modo empático como lhe expliquei a situação do marido. Apesar disso, esta interpretação não me alivia o mau estar... Aquela nota queima-me as mãos.