Passo a explicar: trata-se da traição, por parte deste governo, ao espírito da Medicina Hospitalar, no que se refere ao atendimento a doentes em Serviços de Urgência. É uma perspectiva "interna", se assim lhe quiserem chamar.
Toda a estrutura do SNS em Portugal assentava, bem ou mal, no atendimento de casos que não punham em risco a vida dos doentes (casos "não urgentes", a patologia banal, mas de surgimento súbito e incómoda, que carece de observação e, por vezes, de tratamento) em Serviços de Atendimento Permanente (SAP's) ou equivalentes, com posterior encaminhamento para estruturas hospitalares de Urgência dos casos potencialmente mais graves, já devidamente triados nessas estruturas.
Assim, esse atendimento em SAP era feito geralmente pelo Médico de Família, conhecedor muitas vezes até do doente que lhe aparecia pela frente, seja como for, conhecedor da patologia o quanto baste para resolver o problema da maioria dos doentes (as "gripes", as "gastrenterites", as "amigdalites", as "crises de ansiedade", as "crises vertiginosas", e por aí fora...), variando então a sua eficácia em função da sua capacidade, controlado pelos serviços a jusante.
A estrutura hospitalar, por sua vez, estava estruturada para receber doentes mais complicados, para o diagnóstico diferencial da doença que carece de cuidados urgentes ou emergentes, e era maioritariamente composta por especialistas de Medicina Interna, Cirurgia Geral, Ortopedia, Ginecologia-Obstetrícia e Pediatria.
Claro que muitos doentes fugiam a este "roteiro", e adulteravam o sistema através dos mais diversos estratagemas, no sentido de se dirigirem preferencialmente ao Hospital, onde existem meios humanos e complementares de diagnóstico mais abundantes.
Mas muitos eram mesmo atendidos nos SAP's, e viam lá resolvidos os seus problemas.
Nos dias que correm, desapareceram os SAP's, e a estrutura hospitalar suporta tudo. Aqueles que dantes se dedicavam a atender casos urgentes passaram a fazer consultas "banais". Muitas. A acrescer aos casos urgentes, que como é óbvio não desapareceram. Criaram-se esquemas de triagem, mas que são naturalmente falíveis, e compromete-se, aqui e ali, a saúde e por vezes a vida de alguém.
Ao brutal aumento do afluxo de doentes, não houve, evidentemente, aumento concomitante dos profissionais ou melhoramento das estruturas físicas existentes, que já não eram propriamente abundantes e boas, respectivamente, antes desta engenhosa "reforma".
E os profissionais existentes estão, como é óbvio, descontentes.
Passaram a executar maioritariamente actos para os quais não estão vocacionados (atendimento de "patologia não-urgente" a granel). Passaram a estar sempre pressionados pelos doentes descontentes, que estão à espera de ser atendidos. Muitos sem doença urgente, mas também sem terem para onde ir resolver o seu problema, que carece, obviamente, de atenção médica. Passaram a ter menos tempo e disponibilidade para o atendimento aos doentes realmente urgentes (pois existem aqueles todos ainda por observar "além", que podem ser urgentes ou não). Passaram a estar mais cansados. Passaram a estar mais insensíveis ("eles que esperem, eu só vejo um de cada vez") e intolerantes com a pessoa-doente ou os seus acompanhantes ansiosos. Surgem conflitos irracionais, com doentes a culpar médicos e médicos a desdenhar as queixas da pessoa-doente.
Numa palavra: estes serviços de Urgência, agora mistos de SAP-Urgência, tornaram-se antros de descontentamento. Só lá está a trabalhar quem não tem como fugir àquilo (a não ser os "patos-bravos", vulgo tarefeiros, que ganham principescamente por hora de trabalho para efectuar aquele serviço, geralmente indiferenciadamente, e que não resolvem problemas nenhuns, apenas encaminhando-os ao pessoal "da casa", que tem essa capacidade). E só para lá vai aquele que não tem capacidade para recorrer a outro sítio mais humanizado para resolver o seu problema.
Mas poupa-se, sim senhor.
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