quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Doar, eu?

Só em Portugal se consegue aprovar uma legislação em que, solidariamente, o governo decide dispôr dos nossos órgãos por defeito.
Ou seja, se o cidadão não se inscrever activamente na lista de "não-doadores" (o que poderia ser entendido como discriminativo pela sociedade "civilizada", mas pelos vistos apenas e só se os não-doadores dessem o cu, ou fossem portadores de uma qualquer doença grave infecto-contagiosa que pusesse em risco a saúde pública, ou outro motivo gloriosamente mediático que tal...), habilita-se a que lhe saquem as vísceras viáveis após a sua morte.
E qual é o problema? Então não é bonito, e fácil, salvarmos vidas depois da morte?
Em 1º lugar, há a questão filosófica da individualidade (ou se quiserem, a parte do "não é importante mas faz-me nervos"): gostava de, activamente, ser solidário e disponibilizar os meus órgãos para a saciedade, ao invés de os mesmos estarem disponíveis por defeito, só me restanto o ónus de não me marginalizar "indisponibilizando-os", por real desejo (a ínfima minoria) ou preguiça/ignorância (quase todos). Onde está a "solidariedade" aqui? É o estado que é solidário com os meus órgãos? E se eu for solidário, como me distingo dessa massa de desconhecedores e/ou preguiçosos que apenas não querem saber destas questiúnculas pós-mortem? Até hoje, não tratei um único doador em que os familiares todos não se encontrassem claramente surpreendidos com esse facto, denotando nunca terem sequer abordado essa questão nas suas casas, uns com os outros (os tais "solidários por defeito") .
Em 2º lugar, o real problema. Mais ou menos à socapa da populaça a quem vamos sacar os órgãos, definimos depois critérios de elegibilidade para "candidatos a doador solidário". Ninguém duvida da pertinência e da inocuidade de se seleccionar um doador quando, após termos tentado fazer tudo para salvar um indivíduo viável, COM O INTUITO do mesmo recuperar para uma vida activa, com coração E CÉREBRO funcionantes, as coisas correm mal e ele acaba por ficar em morte cerebral (e note-se, coma/estado vegetativo persistente NÃO É morte cerebral!). Tirem-me, pois, os órgãos nestas circunstâncias. O problema está na cada vez maior tendência, que é real e vai acontecendo por esses hospitais fora, com o incentivo dos organismos ligados aos transplantes (apelando geralmente ao "bem maior", e que é o potencial receptor, face ao desprezado e moribundo doador) e do Estado (através do pagamento de chorudas comissões aos hospitais, por cada "doação"), após o vastíssimo debate público que se sabe (e que se assemelha ao que levou à aprovação da "solidariedade por defeito"), em REANIMAREM-SE ÓRGÃOS, e não as pessoas que os contêm.
E isso, meus caros, aos meus olhos é dramático. Uma coisa é iniciar uma reanimação com o objectivo de recuperar a pessoa que se encontra em paragem, parando-se as manobras assim que a viabilidade neurológica potencial é nula (isto é, sempre a pensar no doente que temos à frente). Outra coisa é manter-se a reanimação muito para além do tempo aceitável para qualquer potencial reabilitação neurológica, com o intuito de se deixar um coração a bater apenas e só para se manterem (potenciais) órgãos em doentes com (potencial) morte cerebral; e isto A TROCO de muitos corações a bater em doentes em coma/estado vegetativo persistente, com todo o sofrimento que isso traz aos familiares dos doentes, e com toda a carga que isso traz às instituições de saúde (isto é, a pensar num eventual doente que não está ali, e sem estar a pensar de todo naquele que temos debaixo dos nossos olhos).
E isso, meus caros, acontece levianamente, à margem de qualquer debate, nos corredores das instituições de saúde, e segundo o critérios e sensibilidade de cada um que se encontre perante estas situações.
Acabo com uma nota de intenção pessoal: a mim, só me reanimam (uma manobra que tem tanto de popular quanto de mal-sucedida e efémera) até aos 60 anos; depois disso só quero correr o risco de morrer uma única vez; mesmo nestas condições, se me reanimarem, não o farão nunca durante mais de 15 minutos (e se não recuperar entretanto circulação espontânea, cessam-se manobras); só me renimam se presenciarem a paragem; em caso de dúvida, ainda que ligeira, quanto ao tempo de paragem: não iniciam a reanimação em circunstância alguma.
Essa é a minha declaração de intenções, que de pouco me vale, já que naquelas circunstâncias terei obviamente pouca capacidade reivindicativa.
Ou seja, e em suma, aterroriza-me o facto de pensar que, em circunstâncias de paragem cárdio-respiratória, ficar à mercê de um qualquer "mecenas" que, mais ou menos levianamente, e a troco da eventualidade de poder aproveitar algum dos meus órgãos, joga com o prognóstico dos meus neurónios, habilitando-me com elevado grau de probabilidade a uma vida em coma ou estado vegetativo persistente, com toda a repercussão que isso teria para a minha família e, quem sabe, para mim próprio, sem se conseguirem afinal sequer aproveitar os tais órgãos, que a dada altura passaram a ser preocupação única de quem estava ali para me tratar A MIM (pois não estando em morte cerebral, não se podem retirar, obviamente, órgãos alguns).
E fica aqui a declaração última de execrabilidade deste menino: se nos próximos anos não houver um debate A SÉRIO sobre este tema, podem ter a certeza que contarão com a minha inscrição nos registos nacionais de NÃO-dadores (o RENNDA; conhecem?).
Boa sorte para vocês todos e vossas famílias, em vida e, cada vez mais, mesmo depois da "morte". Porque isto que aqui relato, meus caros, está a acontecer agora mesmo, em Portugal.
E é legal.

2 comentários:

Anónimo disse...

E aos 59 será que ainda vai pensar o mesmo acerca da "data limite" para a reanimação?
Gosto do seu blog!
EF

Luís Tavares disse...

Ora Viva Dr.!
E vivo quero que continue para nos alegrar com seus textos! São magníficos, apesar de nem sempre estar de acordo com todos eles. E ainda bem!
Quanto à doação:
Sou contra a doação (seja do que for) por decreto-lei. Mas conhecendo a "veia filantrópica" de todos nós, há melhor solução?
Todos nós, sem excepção, se dessemos um pouco do que temos - seja o que for - o Mundo seria melhor. É óbvio. Óbvio também é que os que dão voluntariamente são uma minoria muito pequenina.
Não me vou pronunciar sobre a ténue fronteira sobre o vegetativo e a morte com fins de recolha de orgãos.
Não vou, nem quero, tornar este espaço que me concede para monopolizar o mesmo, mas apenas quero dizer-lhe - caro Dr. - que apesar de não ver a doação de orgãos como um mal maior, continuarei a lê-lo com o maior gosto!