terça-feira, 20 de março de 2007

Contradições

Esta Medicina que se exerce é, não raras vezes, contraditória e ambivalente nos seus propósitos. Interna-se e trata-se o AVC agudo, por vezes numa moderníssima Unidade de AVC (como já começam felizmente a proliferar por esse país fora, e no mundo), efectuam-se de qualquer maneira as avaliações de rotina (ECG, ecocardiograma trans-torácico e, quando indicado, trans-esofágico, eco-doppler dos vasos do pescoço e trans-craniano, TAC, ressonância magnética, ...), avalia-se o doente de acordo com os critérios internacionalmente aceites e validados, monitorizam-se as principais complicações, abordam-se criteriosamente as intercorrências, inicia-se tratamento médico e reabilitação física e psicológica especializada. Até estão a acontecer por aí fora as primeiras endarterectomias, trombólises, etc..., o futuro. Tudo perfeito, estamos no 1º mundo. 12º, segundo a OMS em 2002. Mas isto tudo faz-se numa semanita. Depois chega o dia da alta. E regressa-se a África. A saúde andou muito mais depressa que o resto do tecido social. Surgem então os problemas em catadupa, o país real. A família já não tem condições para ter aquele inválido, pessoa parcial ou totalmente dependente, em sua casa. Todos trabalham, ou simplesmente não podem ou não lhes apetece. O apoio domiciliar pode ser ou não possível. Pode-se até institucionalizar o doente, numa dessas instituições para onde os mandamos, cada vez com mais vergonha, por sabermos que fariam as delícias dos mais sádicos adeptos da solução final em tempos idos, com a desvantagem da "nossa" solução ser agoniantemente mais lenta, mais desumana, mais hipócrita. Isto salpicado de mais ou menos esforço/pormenor técnico no intuito de travestir esse fatal decorrer dos acontecimentos. Porque "lá fora" não há pedalada para acompanhar o desenvolvimento que existiu "cá dentro". Não há condições, não há dinheiro, a cidadania ainda não chegou lá, a sensibilidade social só toca àqueles que se vêem enredados numa situação aparentada. Uma minoria, para já. Por isso ainda se mantém a padronização primeiro mundista da avaliação do doente agudo, e depois que seja o que Deus ou as circunstâncias quiserem. Tem família extremosa e disponível? Tem dinheiro? Tem sorte e o défice foi pouco? Tem um médico que se sensibilizou e move montanhas pelo seu caso (mas não por todos, já que isso não depende dele)? Se não, pois então pertence ao grupo da esmagadora maioria dos portugueses. E mais vale não ter um AVC, para já.

1 comentário:

Anónimo disse...

"Interna-se(...)" ( numa enfermaria convencional) efectuam-se de qualquer maneira as avaliações de rotina (ECG, ecocardiograma trans-torácico e, quando indicado, trans-esofágico, eco-doppler dos vasos do pescoço e trans-craniano, TAC, ressonância magnética, ...), avalia-se o doente de acordo com os critérios internacionalmente aceites e validados, monitorizam-se as principais complicações, abordam-se criteriosamente as intercorrências...". E se nada disto for feito (apenas um TAC), poderão tais exames ser solicitados/ exigidos pelos familiares?