quarta-feira, 4 de julho de 2012

Sobre o Ovo e a Galinha


Relativamente à excelência selectiva que (ainda) existe para o curso de Medicina hoje em dia, para o qual como sabem só acabam por ter acesso uns poucos dos muitos candidatos ao mesmo, já ouvi diversas confabulações nestes muitos dias que já conto.
A mais repetida das quais, com que muitos contam fechar o assunto nas conversas sobre o tema, é a que postula que "nem sempre os que têm melhor nota são os mais aptos a serem médicos".

Isto abre portas depois às mais diversas ficções dentro da ficção, ao nível da complexidade de uma "Terra Média" do senhor dos aneis, do império galáctico da saga "Guerra das Estrelas" ou do mundo de Harry Potter!

A saber: "muitos alunos que dariam excelentes médicos vêem-se remetidos para outros cursos" e "há alunos que apesar de terem boas notas nunca darão bons médicos". Vai um passinho até se achar, finalmente, que qualquer alminha que fica com vontade de puxar de um penso quando vê uma ferida sangrante deve poder exercer Medicina, e frequentar uma das Universidades que lecciona o respectivo curso (feita à medida das suas capacidades, por menores que sejam). E outro passinho até se ter a certeza que toda e qualquer alma com média acima do percentil 95 é um perigoso criminoso, ganancioso e outros "-osos" em potência, à espera de desabrochar aquando do Juramento de Hipócrates.

Temendo desiludir os iludidos, dois pontos:
-Ponto Um: a meu ver, o numerus clausus num sistema de saúde quase exclusivamente público como o nosso, deve servir, não apenas para o fim óbvio de satisfazer as necessidades com médicos suficientes para dar assistência universal (não gratuita, porque sabemos bem que é cara) à população nas diversas especialidades (o que já sabemos não foi, irresponsavelmente, acautelado há uns anos atrás, abrindo portas à palhaçada da importação de médicos de segunda que não tinham lugar nos sistemas de saúde dos respectivos países de formação), MAS TAMBÉM para evitar o sobredimensionamento em profissionais médicos, que por sua vez retire uma das coisas que esta profissão tem de mais apetecível aos olhos de um jovem de 18 anos candidato ao ensino superior, e que é uma certa garantia de estabilidade de emprego, bem como de uma remuneração que lhe permita ter pelo menos tranquilidade no exercício da sua profissão. Sem estes dois factores, não tenham a mais pequena dúvida que muitos vão-se afastar do pouco apetecível sacerdócio do curso e subsequente vidinha de estudo que o correcto desempenho da profissão exige. E dessa forma, os melhores candidatos afastar-se-ão deste exigente curso, e deixarão de ser os melhores (como acontece hoje, e vem acontecendo nos últimos 20-30 anos) a concorrer para amanhã serem nossos médicos.
-O que me leva ao Ponto Dois: se se considera que um sistema de ensino não estratifica da melhor forma os que o frequentam, e logo os candidatos, por exemplo, ao curso de Medicina, então alguma coisa está mal... COM O SISTEMA DE ENSINO!! Por outras palavras, se os que conseguem aceder ao curso de Medicina, sendo os que têm melhores notas no ensino secundário, não são os mais bem preparados que o ensino secundário produz, então alguma coisa está mal nessa estratificação do ensino secundário, e este deve ser reformado por forma a que os melhores e mais capazes (à partida) tenham as melhores notas.

Parece simples? Então para quê complicar? Para quê continuar a fingir que os melhores alunos deste país ao longo de várias gerações, de acordo com os critérios do nosso sistema de ensino (bons ou maus), são uma cambada de mafiosos a quem calhou uma espécie de lotaria entre mãos, que foi a de se tornarem médicos? Gostariam de "melhorar a triagem" de alunos com critérios subjectivos, como uma entrevistazinha a convidar à cunha? Acham que precarizando esta profissão (e seus profissionais), deixando de a tornar atractiva, vão ter melhores médicos no futuro? Mesmo a granel? Qual vai ser a triagem pós-graduada (já que se pugna em tentar destruir a pré-graduada) entre bons e maus médicos? Aquele que é contratado pelo Serviço Nacional de Saúde "pelo menor preço" é que vai ser bom?

Ganhem juízo.... E deixem-se lá de procurar nos maus exemplos da classe um retrato de todos.
A maioria de nós são apenas isso (como já o eram enquanto alunos de liceu): esforçados, dedicados e capazes!
Quanto aos corruptos, preguiçosos e caloteiros (que, pasme-se, também existem!), façam-nos só um favor: persigam-nos e afastem-nos das nossas narinas, que também não gostamos deles (e somos os que mais sofremos com a sua presença, depois dos doentes). Para isso espera-se um maior papel da OM, com maior capacidade de intervenção (nomeadamente em meios para o apuramento dos factos, que é um dos seus principais problemas, ficando actualmente quase sempre à espera das decisões judiciais para emitir pareceres), e mais investigação e dureza por parte da justiça perante os prevaricadores. Uma maior capacidade de punição laboral também faz falta (aumentar a flexibilização para DESPEDIR as ervas daninhas), aumentando assim a capacidade de intervenção dos directores dos serviços, desde que se alie a isso uma efectiva responsabilização dos mesmos pelo que se passa nos seus serviços. Também passa por se abrir portas às denúncias, e à sua efectiva investigação (aquilo a que tenho assistido nesse campo é desesperante, silenciando-se quem denuncia, fechando os olhos às evidências e arquivando-se os processos que justamente se levantam, mesmo em sede de Justiça).

Mas façam um favor a quem tem neurónios, e deixem-se lá de uma vez por todas das teoria que o mal está na selecção dos futuros médicos pelo critério dos que têm melhores notas no liceu, ou no seu número adequado às necessidades do país. Porque estarão a tratar um problema com outro muito maior, e de mais difícil resolução.

Por mim falo: aos 18 anos parecia-me bem vir a encarnar aquela figura sentada atrás de uma secretária (não parecia trabalho cansativo...), com aquele poder do conhecimento acerca do que se passava com as minhas entranhas (como descobri depois, altamente sobrevalorizado, diga-se de passagem...), e que me parecia ter vida relativamente desafogada (enfim, o meu médico de família foi um péssimo exemplo...). Vocação? Só entrei num Hospital no 4º ano do curso e nunca me apeteceu ir acampar num campo de refugiados em África, se é por aí que os caros leitores avaliam "vocações". Aliás diga-se que duvido que tivesse passado numa entrevista vaga sobre os meus sentimentos pela espécie humana em geral, que são desde esse tempo bastante semelhantes aos actuais. E, até para minha surpresa (porque ninguém, apesar de tudo, está imune a esta pressão da "vocação"), e contra as minhas melhores expectativas, acabei por me tornar naquilo que considero ser um excelente profissional de saúde, daqueles que conseguem fazer tudo o que é humanamente preciso para tratar, segundo as melhores orientações internacionais, os doentes que lhe aparecem pela frente.

Não posso pedir mais em termos de realização profissional. Mas já que dou tudo o que tenho, e que espero que seja tudo o que há para dar, espero no mínimo por algum reconhecimento pela justeza do meu trajecto de vida.

1 comentário:

Anónimo disse...

Quando diz “com critérios subjectivos, como uma entrevistazinha a convidar à cunha?”, parece-me que resume com clareza o que vai na cabeça de quem defende outro método que não o da média.

Bem sei que muitos alunos que entram em Medicina (à primeira) só o conseguem porque os pais são de um extracto social médio ou acima disso (podendo ter, por exemplo, explicações), mas conheço vários casos de pessoas (oriundas de famílias humildes) que à 2ª ou 3ª tentativa ingressaram nas Faculdades de Medicina.

Portanto, parece-me que as regras actuais acabam por garantir justiça no processo.