quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Carlos Martins, Gustavo e a Leucemia


Uma criança está doente, corre risco de vida e precisa de um transplante com uma medula o mais compatível possível, é filha de uma estrela de futebol e, como tal, o seu drama comoveu o nosso pequeno mundo rectangular à beira-mar plantado.

Somos muito hipócritas, todos, quando nos julgamos bons samaritanos ao mobilizarmo-nos neste caso, como se não existissem outros semelhantes, todos os dias de todos os meses, há muitos anos a esta parte.

Por isso não se iludam: os que doarem a sua medula por terem sido chamados à atenção neste caso particular (nunca tendo sido sensibilizados para esta questão), e mantiverem disponibilidade futura para casos sobreponíveis, bem como os que já antes doavam, esses sim, mas só estes, são verdadeiros e dignos altruistas, merecedores da nossa admiração e respeito. Porque são maiores, e tão maiores, ainda que anónimos, que a esmagadora maioria miudinha que os rodeia.

Todos os outros são patéticos indivíduos que se vão incomodar apenas e só para fazer o frete da moda, por se tratar do filho de um futebolista famoso, imbuindo-se de uma moralidade que não têm nem passarão a ter.

Ou seja, não são altruistas, não são melhores que os outros, aliás não valem mesmo um chavelho, numa perspectiva social e global de cuidados de saúde, e estão-se a marimbar para todas as crianças e adultos que, desde sempre e para sempre, se depararam, deparam e depararão com este e outros problemas semelhantes, em que o seu destino vital passa por haver uma dádiva orgânica de alguém a troco de nada (seja sangue, um rim, medula, e por aí fora...).

E isto é um sintoma nauseante de hipocrisia, esse exercício travestido de benevolência, que não deixa de me revoltar as entranhas.

Posto isto, que Gustavo viva muitos e bons anos com saúde e sem leucemia, e que os seus pais tenham a possibilidade de lhe dar todo o amor que ele merece, e que este sofrimento de ter um filho em risco de vida, que ninguém devia ter que padecer, tenha fim a curto prazo. Assim dito, com a sinceridade de um Pai, e com a empatia de quem espera nunca ter que passar por calvário sequer parecido.

O Gustavo, MAS TAMBÉM o Miguel, o Pedro, o João, o Paulo, o Gonçalo, o André, o Nuno, o Diogo, o Fábio, o Tiago, o Abel, e todos os (muitos) outros que existem e de quem não se fala, e todos os seus sofredores pais, que não têm a bênção mediática de Carlos Martins.

Estes sofrem, e às vezes morrem, na sombra onde sempre me encontrei.
Talvez seja só por isso que me ofusca tanto, nestes dias, este tão iluminado tema da nossa praceta....

4 comentários:

Anónimo disse...

fico com a mesma revolta em relação ao sentimento hipócrita em relação a uma realidade que já nos afecta à bastante tempo.

Muito bom texto e parabens.

Anónimo disse...

Não deixa de ser verdade o que disse, e compreendo a revolta que sente, agora tambem acho que se existem estes momentos em que todos damos as mãos e podemos tomar consciencia do flagelo que é esta doença, não é chamando hipocritas a quem começa agora a dar o seu contributo, por ser moda ou não, que se "ganha" alguma coisa. Tenho a certeza absoluta que ninguem se importa de ajudar o João, o Miguel, o Fábio e todos os outros. Por isso vamos ajudar, todos fazem falta, ninguem deve ficar de fora por nunca ter doado...

Anónimo disse...

Subscrevo tudo o que disse! O meu primeiro pensamento perante este circo de famosos apenas se acalmou pelo facto desta onda de dadores contribuir para os muitos Gustavos que há muito sofrem...Ainda que intencionalmente, estes orgulhosos em fazer do gesto a sua causa, acabarão talvez por ajudar as muitas crianças com leucemia que aguardam o dador compatível!

Placebo disse...

Exmo comentador das 11:50

"(...) os que doarem a sua medula por terem sido chamados à atenção neste caso particular (nunca tendo sido sensibilizados para esta questão), e mantiverem disponibilidade futura para casos sobreponíveis, bem como os que já antes doavam, esses sim, mas só estes, são verdadeiros e dignos altruistas (...)"