sábado, 29 de janeiro de 2011

Ingenuidades

Hoje foi um dia giro....
Num revivalismo de tempos recentes, em que não me encontrava moralmente tão conspurcado como hoje, passeava-me eu pelas Urgências do meu Hospital à procura de alguém quando fui abordado por um jovem colega, interno de uma especialidade a fazer atendimento em balcões.
Devem-lhe ter dito: "olha, vai ali um gajo que faz Cuidados Intensivos, vai-lhe falar do doente!". E ele diligentemente veio.
A parte bonita, pura, foi a forma como ele desde logo começou a conversa, aniquilando qualquer possível encaminhamento favorável às suas eventuais pretensões:
-"Dr, queria-lhe falar de um doente que tenho ali em coma, a ver o que acha que lhe devo fazer mais...";
Não conhecendo eu o colega, não consegui virar costas à pergunta por solidariedade corporativa e sempre surpreso pela aparente ânsia de querer fazer melhor, e então dei seguimento ao diálogo adiantando: -"Diz-me lá então o que se passa?".
-"É um doente de 103 anos, que vive num lar, e que hoje ficou em coma (blábláblá...)";
(Julgando ter percebido mal..., passados alguns segundos) -"Quantos anos?"
-"103!", responde-me o meu incauto interlocutor, em jeito de detalhe que me teria escapado.
Foi encantador, e não vos maço com o resto do caso clínico.
Se fosse minimamente traquejado, saberia que nunca, mas nunca deve começar uma conversa, particularmente se pretender que se escale no grau de "investimento" de um doente, com "-tem mais que 80 anos-", nem tão pouco com "-vive num lar-".
Uma pessoa com mais de 80 anos, e que respira, já está muito bem para a idade, independentemente da sua condição clínica. É que em princípio, com essa idade, está-se morto. Estatisticamente.
Com 103 anos então, não interessa o que se segue na conversa, só conseguimos pensar em como é possível alguém atravessar duas guerras mundiais e ainda estar vivo. Em passar da lamparina, e do cântaro, pela electricidade, pela televisão, pelo telefone, pelo carro, e chegar ao avião, ao foguetão, aos computadores e ao telemóvel! Até o iPad ele viu (se é que ele ainda conseguiria ver). Fabuloso!
E não se preocupem com o meu colega, fui absolutamente correcto e dei conselhos adequados, ainda que no sentido de uma abordagem conservadora "apropriada à idade" que o desiludiu de certa forma, quanto ao caso clínico que me transmitiu na totalidade, ainda que não tenha a certeza de ter estado muito concentrado em todas as partes, de tão endorfínicas que ele deixou as minhas sinapses.
É bonito, ser-se assim.
Mas passa-lhe, infelizmente.

1 comentário:

TTA disse...

Pois é, às vezes penso que a vida está mesmo bem feita. Quando começamos nós no cepticismo, no cansaço, no "estupor" (;-)), a vermos à distância logo o filme das coisas e, por isso mesmo, a não nos iludirmos com elas (o que é prático, mas também um pouco triste) vêm, mesmo a tempo, estes jovens colegas, cheios de "pica", ou de "cigueira" como se diz no Alentejo, para nos arrebitarem, provocarem e animarem...