Eu sou, parece, um burguês capitalista.
Não nasci assim.
Pais trabalhadores com escolaridade mínima, emigrantes porque por cá só vislumbravam o limiar da sobrevivência e ambicionavam algo mais para o seu futuro, sendo corajosos qb para se aventurarem no desconhecido, verdadeiros herdeiros do instinto descobridor dos seus antepassados, dispostos a arriscar, não diria tudo, mas mesmo muito em troca do sonho de uma vida melhor.
Filhos a quem foi oferecido o privilégio de poder ultrapassar os 10 anos de idade sem terem que trazer dinheiro para casa, como lhes sucedeu a eles, permitindo-lhes estudar até provecta idade para, caso "tivessem cabeça", experimentarem talvez um curso superior, coisa cujos meandros claramente desconheciam para lá da parca experiência do dia-a-dia em contacto com alguns "doutores". Filhos, entre os quais tive a sorte e o privilégio de me incluir. Filho deste heróis-progenitores.
Não calculavam provavelmente que as notas dariam para "Medicina", e que o curso implicaria sustentarem-me até uma idade em que eles há muito eram já meus progenitores, e salariados independentes já com um mínimo de conforto auto-suficiente na vida, mas pacientemente foram alimentando o meu desvario, e lá acabei, um belo dia (e ligeirinho, para os timings que a coisa implica), por me transformar neste burguês capitalista que sou hoje.
É claro que as minhas "origens humildes" levam-me a ter valores que, a meu ver, me conferem indubitável vantagem selectiva relativamente a alguns para quem as coisas podem parecer caídas do céu, ou seja, em termos de insight com o meio que me rodeia.
A única coisa que não fica seguramente acautelada com estas mesmas origens, é a minha tolerância para o "discurso do desgraçadinho", que nunca mais passa de moda em Portugal. Será a maldição que veio de mão dada com a bênção.
O "desgraçadinho" é por exemplo o delinquente que me espatifou o carro na maldita hora em que me lembrei de ir à capital em lazer um dia.
Pensei, mal, que a vida seria mais colorida se dividida entre o sossego da minha quintinha e o contacto cultural e/ou social do mundo exterior, e estava, como já o confessei noutros posts, redondamente enganado.
Não há pois nada de bom que se passe para lá dos postes que delimitam a minha quintinha.
Porque nada impede que nos deparemos com alguma vítima do imperialismo burguês (que eu pelos vistos materializo), um desfavorecido da sociedade, marginalizado pelas gélidas regras do capitalismo, e que esta destrua um nosso qualquer bem material.
Há coisas piores? É fácil imaginar que sim. Podiam ter insultado a minha própria pessoa ou deteriorado a minha saúde, ou ter-me melindrado psicologicamente ou moralmente com algum outro tipo de violência, ou pior ainda, tê-lo feito a alguém que prezo.
Mas por mais milhentos de formas piores que eu consiga encontrar de ser ofendido e desrespeitado, tal não serve infelizmente de grande consolo a este ingrato espírito com a mania das exigências, e difícil de contentar.
Para que conste, o carro não é mau mas é em segunda mão. Custou-me a ganhar o dinheiro que nele investi.
Vivo bem não sendo rico, mas não trabalho para aquecer, nem para satisfazer caprichos de ininputáveis (ou pelo menos ininputados) fedelhos mimados. Ou não acho que devia....
Confesso dar-me uma náusea extrema ao imaginar esta legião de cretinos que se estão nas tintas para o esforço e o trabalho, dos outros, que me fazem trabalhar para compensar os estragos que directa e indirectamente me infligem, que me adiam a vida e a dos meus dessa forma, passando de certa forma impunes, não apenas por serem cobardes inúteis numa sociedade medrosa que se está a borrifar e se habitua perigosamente a conviver com esta gentalha sem tomar nenhuma atitude, mas sobretudo pelo clima de desculpabilização, em abstracto, que todos teimam em perpetuar para com delinquentes merdosos, só porque "não têm", em contraponto com as suas vítimas, porque "têm" (muito ou pouco, não interessa: "têm" mais que eles, logo serão "culpados" disso).
Como se "ter" não implicasse esforço, suor, trabalho e sacrifício. Como se "ter" fosse sinónimo de oferta, de dádiva.
Como se estragar fosse sinónimo de revolta, como se fosse legítimo, como se fosse desculpabilizável. Como se fosse admissível. Só porque alguma "pobre alma" que "não tinha" estragou, por definição, a um "privilegiado" que "tinha".
As cigarras andam por aí, e até se congregam em partidos políticos e outras agremiações que lhes dão voz, apoiados por uma essencial iliteracia congénita, que lhes alimenta as carteiras de sócios desviando de qualquer réstia de moralidade.
E as formigas nunca mais se põem a pau. As formigas andam com complexos de culpa, as formigas esqueceram-se das suas origens, e da origem das suas provisões.
As formigas hoje em dia até toleram ser governadas por espécimens aparentados de cigarras, que as fazem trabalhar para sustentar outra cigarras, escravizando-as com o argumento terrorista de lhes retirarem tudo o que têm (e vão tirando cada vez mais). E como o espírito de formiga não se coaduna com a carência sem uma boa luta para a contrariar, toleram a opressão das cigarras, a troco de cada vez menos de tudo o que produzem. Toleram a destruição gratuita do fruto do seu trabalho em nome da não-agressão a inúteis cigarras alienadas e misantropas, inúteis e ingratas, , que por sua vez vão doutrinando a sociedade com catecismo próprio para se auto-desculpabilizarem.
Faz-me lembrar aqueles filmes comoventes em que se observa a redenção de um adorável criminoso/vilão/delinquente qualquer, convertido em crente a Deus e na Humanidade. Há dezenas de filmes desses, e muitos deles bem aclamados. Não estou a falar (apenas) daqueles em que o "herói" está no corredor da morte a filosofar, ou em que nos debruçamos 90 minutos nas maldades que se infligem às pobres criaturas em estabelecimentos prisionais, como um jogo de futebol viciado contra os guardas prisionais (esses malandros).
Mas em tantos outros, que todos conhecem. E que parecem demonstrar as milhentas formas de reabilitação dos à partida mais desprovidos de qualquer réstia de Humanidade.
Para nosso consolo?
Pois nesses filmes falta sempre o outro lado da questão. O lado da vítima que desapareceu ou que ficou mais ou menos irremediavelmente lesada. E os familiares da vítima, filhos, cônjuge, pais. E os amigos da vítima. Que vão vivendo como podem à medida que o criminoso se "reabilita". A quem lhes foi retirado para sempre algo, muito, sempre demais, sem culpa nem escolha, enquanto o delinquente se "enriquece moralmente" nesse fenómeno maravilhoso da reabilitação.
Que para alguns limpa o "fenómeno do crime" perpetrado, ainda que nunca se tenha bem em conta esse pormenor colateral que são as vítimas, geralmente culpadas de estarem emocionalmente incapazes de ver a beleza da coisa, de alimentarem sentimento desagradáveis e malsanos de vingança, de desconhecerem o fenómeno do perdão e as suas capacidades curativas. E como tal sempre marginalizadas desses belos quadros que pintámos, e pomos despudoradamente em exposição para iludir os distraídos.
Cabe-nos a nós, enquanto seres pensantes, não nos esquecermos dos pormenores fundamentais que alguma propaganda politicamente correcta procura branquear.
Em nome da salubridade social.
Desta sociedade que vamos deixar aos nossos filhos.
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