Um caso clínico....
Doente do sexo masculino, com oitenta e tal anos.
Dificuldade respiratória aguda, chamada a VMER, com paragem cárdio-respiratória presenciada, e revertida. Internamento na UCI, com choque misto após caracterização por cateterização da artéria pulmonar com Swan-Ganz, e síndroma de dificuldade respiratória aguda (vulgo ARDS), provavelmente secundários a pneumonia de aspiração. Aminas em altas doses, corticóides sistémicos, antibioterapia de largo espectro, manobras de recrutamento alveolar associada à ventilação protectiva que se sabe. Insuficiência renal aguda oligúrica, sem necessidade de técnica substitutiva da função renal (ou "diálise" contínua).
Recuperação notável em alguns, poucos, dias.
Dir-me-ão: é para isso que "tu" serves.
Quem me lê adivinhará a resposta: não sei bem....
Ao "acordar" para o mundo, alguns dias depois de ter adormecido (e, literalmente, "morrido"), surge-nos a realidade, desfasada daquela irreal semanita de 1º mundo com que brindámos o velhote.
E a realidade era uma família presente que se resumia a uma mórbil esposa, em vésperas de necessária importante cirurgia ortopédica e imobilização prolongada resultante, com doença cardiovascular grave a escurecer-lhe o prognóstico a curto-médio prazo.
Quem tomava conta da referida senhora era o velhote, que adoeceu como se viu, atirando-a assim ao cuidado de um qualquer lar. Isto foi precipitado pelo facto da casa deles ter ardido, provavelmente por incúria/incapacidade dela, no manuseio de um fogareiro tristemente necessário para um mínimo de calor nos frios dias que se viviam.
E ele vivia mal, com esta mulher doente, sem dinheiro, remediado como sempre (e só) soube ser. Teria alguma saúde, que entretanto se debilitou (não vos vou maçar com as sequelas). Adoeceu, acontecendo-lhe a última coisa que ele não queria que lhe sucedesse: a perda da independência. Já não tem casa, já não tem onde cair morto. Espera-lhe uma qualquer "instituição", à falta de filhos (que não seriam, por si só, solução para o drama, mas enfim...).
Daí a comovente tristeza da criatura, naquela sua cama de Hospital, a contrastar com o nosso entusiasmo ali ao lado, entretidos a comparar a mortalidade prevista pelo Apache e pelo SAPS, em desafio com a realidade se seguiu. Fizemos um "bom trabalho".
Se a vida fosse justa, teríamos gasto todos os milhares de euros que o SNS colocou à disposição do velhote neste seu internamento nos últimos 5 anos da sua vida, assim tivesse ele podido vivê-los em melhores condições que as miseráveis que tinha. E tê-lo-íamos deixado morrer em paz naquele dia, desta feita com mais dignidade, que se viu mais minguada ainda.
Mas a vida, desesperantemente, não é justa. Ele não tinha praticamente nada, e acabámos por obrigá-lo a viver agora sem absolutamente nada.
O irónico foram as dúvidas que se foram levantando ao longo de todo este processo de internamento. As questões sobre a indicação para toda esta "invasão" a que foi sujeito ("é para investir"?), as questões sobre o (mau) prognóstico, e as discussões sobre até onde era razoável ir, e a partir de onde seria "encarniçamento" terapêutico da nossa parte.
Correndo tudo tão bem, acabou tudo tão mal.
Na sua tristeza imensa, antes da alta, ele pediu-me um cigarro, a partir da sua cama. Não lho pude dar, ainda que me apetecesse fazê-lo. Chamemos-lhe o primeiro passo dos muitos que vai dar no mundo das coisas que ele deixou de poder fazer, por mais que lhe apeteça....
4 comentários:
Os meus parabéns, a situação não é estranha a muitos médicos, mas a descrição é sem dúvida magistral...
A vida é como um jogo de cartas. Jogamos o melhor possível com as que nos calham. À posteriori, é fácil pensar no que deveria ter sido feito. Mas na altura, correr-se-ia o risco de "não investir" num doente com potencial para recuperar para qualidade de vida razoável. Na dúvida, dizem, deve-se errar para o lado do "investimento". Compreendem-se as dúvidas e desalento posteriores. Mas, em situações próximas, na dúvida, não se deveria fazer o mesmo?
E talvez haver possibilidade de um último cigarro...
Bom texto
Belo texto, dá de facto que pensar....
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