Um debate pouco popular, mas importante.
"Mas qual é a dúvida", perguntará o incauto leitor, "então não deve toda a gente ter acesso ao maior e melhor nível de cuidados"?
Não.
Não que não fosse bom, mas porque não há meios para tal.
E por isso sub-dividem-se as pessoas doentes em diferentes níveis de cuidados, que se devem interligar na perfeição, ser eficientes e estabelecer barreiras para evitar o colapso de qualquer Sistema de Saúde, por mais rico que este seja (e geralmente não são).
Ou seja, a constipação, a gripe e tantas outras coisas devem ser resolvidas no médico assistente, sob pena de se entupirem as Urgências por este país fora.
Os lares e as famílias, ou Unidades próprias em número suficiente, devem ter capacidade para cuidar e absorver doentes em reabilitação, doentes em cuidados paliativos ("terminais" ou não), sem entupirem as enfermarias que se deveriam destinar a "agudos", para os quais estão vocacionadas, e que demasiadas vezes se parecem com estes mesmos lares, com depósitos de moribundos isolados e abandonados pelo resto da humanidade, ou com ou hotéis onde se deslocam fisiatras e fisioterapeutas pela manhã para dar a voltinha aos doentes, para logo depois se limitarem a esperar pela voltinha do dia seguinte.
E, finalmente, doentes de enfermaria devem ser resolvidos nas enfermarias, e não em Unidades de Cuidados Intensivos, no fim da linha, devendo essas escassas camas ser reservadas a quem realmente precisa delas, e não usadas porque não se fez a decisão atempada de parar de escalar na agressividade dos tratamentos, e de se instituir alívio sintomático/paliação, naqueles casos onde não é lícito esperar-se que haja ganhos que superem os riscos de distanásia e do prolongamento do sofrimento, muitas vezes porque não se tem a segurança e coragem de comunicar um prognóstico fechado a familiares, preferindo-se o conforto de se chutar a bola para cima, e quem a tiver depois que se desenrasque.
Isto tudo, claro, nem sempre é fácil, e depende muito da qualidade dos executantes nos diferentes níveis.
Quem se esforça rentabiliza ao máximo a "sua" clientela, aliviando os serviços a montante. Claro que há algum risco (de não se encaminhar um caso de gravidade maior), mas com boa prática serão escassos, ainda que só erre quem faz (por definição), o que é relativamente injusto perante todos aqueles que nada fazem, e que por isso nunca erram....
Isto a propósito de, no outro dia, ter visto uma velhinha numa enfermaria com falta de ar, agónica, num quadro arrastado mas que estava pior naquela noite, encontrando-a eu tragicamente lúcida, agarrada a uma imagem de uma Santa qualquer, e a um terço (daqueles que se usam para rezar). Tive pena, o estado restante dela não era compatível com o grau de insuficiência respiratória, e o desespero e aflição eram patentes. Fiz as mesinhas possíveis, e decidi não ir além do razoável. Aliviei-lhe o sofrimento com fármacos, com pena de não ter conseguido convencer-me a mim próprio que ela beneficiaria com outro nível de cuidados (neste caso, Cuidados Intensivos, após entubação oro-traqueal e ventilação mecânica), por receio de lhe estar apenas a prolongar futilmente o sofrimento, para descarga da minha consciência que, dessa forma, não me estaria se calhar a pesar nesta hora.
Julgo que o que eu queria que se pudesse fazer foi diferente do que achei que se podia de facto fazer.
Espero não me ter enganado.
É a diferença entre a velhinha que agora já não sofre, e a velhinha que poderia estar viva, com mais uns dias de agonia em cima rumo ao inevitável exitus, ou eventualmente a mais uns tempos de qualidade após restitutio mais ou menos ad integrum.
A chatice, é que nunca o saberei.
A chatice, é que quando não nos damos ao trabalho de pensar nisso, e investimos cegamente em todos, é tudo tão mais fácil para nós, ainda que por vezes penoso para os doentes.
A chatice é que, a actuar assim, somos sempre tão passíveis de ser postos em causa, sem possibilidades inequívocas de defesa.
A chatice, é que estas coisas são mesmo chatas, e que pouco ou nada podemos fazer para evitar estas chatices no futuro. A não ser que passemos a não estar para nos chatear....
2 comentários:
Que não lhe pese a consciência se actuou segundo o melhor interesse da doente!
Sei que estas questões são difíceis e a minha perspectiva é sempre a da doente ou familiar, já que não sendo médica não sei a vossa, mas não acha que há pouco diálogo entre médicos e familiares quando os doentes estão em estado terminal? Falo de um diálogo profundo, em local reservado, com tempo e disponibilidade no sentido de explicar aos familiares que os tratamentos não fazem mais do que prolongar o sofrimento? Não chega, para um filho ou alguém muito próximo, uma conversa de corredor ou de pé de cama!
Claro que há pessoas capazes de entender e outras não e é tudo muito complexo, enfim. mas fica a questão.
(Sim sei que estamos em Portugal...)
Isso é outro problema que eu apenas aflorei, o da comunicação com os doentes e as famílias.
E é verdade que, quando as coisas são antecipadas e faladas atempadamente com todos, as decisões nessas alturas são sempre facilitadas (ainda que possamos nem sempre concordar com as decisões).
Eu aqui estava-me mesmo a cingir ao episódio agudo e imprevisível, que exige decisão imediata e "sem rede".
Mas é bem visto.
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