Dois termos caros no dia-a-dia da Medicina que se vai praticando por aí: viabilidade e investimento.
Num extremo temos a abordagem que tudo o que (não) respira é para ser "investido", ainda que a viabilidade seja nula. E por nula incluo os não-raros casos de doentes em paragem cárdio-respiratória durante mais de 15 minutos sem assistência, ou de 30 minutos sem recuperação da circulação espontânea, apesar de assistidos, salvo excepções (afogamentos, etc...). Dizem os livros que a "viabilidade" neurológica é, nestes casos, próxima de zero. Ou seja, na prática, estamos a reanimar um corpo sem alma, um trambolho para a família e para a sociedade, dados os elevados custos de manter o "corpo" vivo no pós-reanimação, no Hospital ou fora dele. Há brinquedos bons, e mais baratos.
Outro caso de viabilidade duvidosa, é aquele desgraçado acamado, demente, internado mês-sim, mês-não por infecções diversas, escariado, a sobreviver no limiar das reservas dos seus órgãos sucessivamente insuficientes, que às vezes até inicia diálise (substituição renal), que faz oxigénio no domicílio, e mais coisas tivéssemos para o auxiliar e só lhe sobrevam os olhos com vida independente de assistência médica.
Num e noutro caso, a abordagem desenfreadamente "curativa" (de aspas bem carregadas) é, a meu ver, crime. E devia-se ter a coragem de não prolongar o sofrimento do ser humano que está à nossa frente, no primeiro caso, dando-lhe o privilégio de não ter que voltar a morrer mais tarde, e no segundo de não ter que continuar a viver nas condições lamentáveis que já ninguém consegue reverter. E nós, médicos, somos os responsáveis por essa decisão, sempre que os familiares não têm o bom-senso (ou a coragem, ou a sensatez) de preservar os doentes de uma eventual calamidade médica, que consiste no prolongamento desumano do sofrimento.
Por outro lado, e pelo menos tão grave nos meios que tenho frequentado, é a outra face desta mesma moeda. Ou seja, a decição de não "investir" por putativa falta de "viabilidade".
E putativa porque não raras vezes, a viabilidade é aferida pelo "aspecto" da criatura. Ora sendo que o fácies de um doente agónico ou em paragem cárdio-respiratória parecer-me, a mim, invariavelmente mau, tornando-se difícil pronunciar-me por esse meio acerca da viabilidade ou falta dela, desconfio. E demasiadas vezes é apenas esse o critério, à falta de qualquer outro.
A idade não ajuda. Se tiver mais de 80 anos, é bom que dê entrada no serviço de Urgência, aquando de uma patologia crítica súbita, com um sorriso convincente nos lábios, caso contrário arrisca-se a entrar no clube dos "desinvestidos", por melhor que estivesse antes da doença.
A hora de chegada também é factor decisivo, bem como as vagas nas enfermarias, o horário da próxima refeição, a disposição momentânea do clínico, a sobrecarga de trabalho do momento, o "à vontade" com as nuances da Medicina de Emergência, e nenhum desses factores deve ser menosprezado na qualidade da decisão final relativa à intensidade do investimento.
Por último, o "mas" fatal, aquele que nos diz que o equilíbrio entre o pender para um ou outro dos exageros descritos não é fácil: é que não é fácil mesmo decidir.
Nos casos de paragem cárdio-respiratória, raras são as vezes em que se consegue uma descrição minimamente convincente da altura da PCR. Não raras vezes se chega à conclusão que aquele "minutinho" que o doente esteve parado teve o efeito devastador de cerca de meia hora de isquémia naquele cérebro. Não raras vezes se vão buscar cadáveres agónicos no domicílio, que devem parar completamente na ambulância à saída de casa, e que dão entrada nos serviços de Urgência sem que ninguém se disponibilize para explicar o que quer que seja acerca do sucedido. E para o médico, aquele senhor em PCR, até prova em contrário, deve ser abordado como tendo acabado de parar naquele preciso momento, salvo evidência de putrefacção em contrário (mas não é fácil ser decisivo, e o tempo joga a desfavor do bom-senso nestas situações).
Idem aspas quanto às situações de falta de viabilidade dos doente crónicos e sofredores, em domicílios familiares ou em lares. Devendo-se juntar, nestes casos, as questões éticas importantes, e que são tudo menos consensuais dentro da própria classe.
Ou seja, uma questão complicada, esta da Viabilidade (e da Qualidade do Investimento subsequente).
1 comentário:
Esta pessoa que o comenta acordou um dia num hospital, num local que não conseguiu perceber o que era -mas seguramente não era uma enfermaria. Não havia iluminação e só conseguiu conhecer uma porta fechada. Meses depois descobriu que havia quem a considerasse morta, porque tinha perdido a vida pouco depois das equipas de emergência a terem socorrido - ainda a alguns km do hospital. Descobriu também que essa tinha sido a informação prestada a alguns dos seus familiares.
Questiono-me quantas vezes esse desinvestimento impossibilitou a "casos especiais", como me apelidaram, a capacidade de sonhar e construir.
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