Estou a ficar mais velho, e por isso vou-me confrontando lentamente com algumas "pérolas" jurídicas do nosso país, que me permite nesta altura concluir pelo seguinte aforismo:
-Só quem faz é que pode ser acusado de fazer mal. Quem nunca faz nada, em Portugal, nunca é responsável por crime algum.
Parece lógico? O nosso sistema judicial também acha, e já me confrontei um par de vezes com calamidades de injustiça decorrentes desta anormalidade.
Longe vão os tempos em que eu pensava que alguns colegas meus eram completamente loucos, não viam os seus doentes decentemente, não escreviam nada nos processos, e quando as coisas davam para o torto, lá tinha que ir um de nós, os que vêem os doentes, os que escrevem nos processos dos doentes, os que tratam os doentes, para salvar a vida da criatura. E pensávamos: "como é possível que alguém seja irresponsável ao ponto de (não) fazer um trabalho destes"?
Que ingénuo que eu era.... Hoje já sei a resposta, e afinal "eles" são os espertos, e "nós" os burros.
De facto, quem não escreve, nem faz, na altura da verdade (a da investigação de uma queixa de algum doente, ou familiar de doente, acerca de um bem ou mal-fundada negligência), nunca é acusado de nada. Vão-se procurar os "suspeitos de crime" onde? Ao processo! E eles, os (ir)responsáveis, não constam do processo!
-"Então porque é que o Dr não viu ou não fez nada"?
-"Já não me lembro".
-"Mas o doente estava muito mal no dia x, porque não escreveu nem fez nada"?
-"Não me lembro desse caso, foi há muito tempo".
-"Mas o Dr y é que foi ver o doente no dia da sua morte, e ele escreveu que o estado era muito avançado, e já não conseguiu salvá-lo por se ter ultrapassado o timing de reversibilidade da doença, sugerindo que o doente tinha sido anteriormente mal abordado"!
-"Então vai ter que falar com o Dr y"....
-"Mas como é possível que o Dr é que era o Médico Responsável do doente, e que só haja registos da sua interna? Você não vê os doentes com a sua interna? Não é o tutor dela? Não está no Serviço a apoia-la todos os dias?"
-"Sou, mas ela é responsável pelo que escreve, é a ela que tem que fazer essas perguntas".
-"Mas apoiou-a, concordou com ela e subscreve o que ela escreveu no processo deste doente em concreto?"
-"Não me posso pronunciar sobre isso, não me lembro do caso concreto".
Quem vai a tribunal neste caso? É a desgraçadinha da interna! O "médico (ir)responsável" não escreveu, logo é ininputável. Em vez de trabalhar estava noutro sítio qualquer, ou simplesmente não ligou nenhuma aos doentes a seu cargo, deixa a interna sozinha e angustiada a dar o seu melhor, sem ela ter os conhecimentos muitas vezes necessários para resolver algumas situações mais complexas (e são essas que correm mal), ela fez o melhor que sabia, e escreveu no processo sempre sem comprometer o irresponsável que a devia tutelar, porque é de mau tom criticar por escrito quem nos vai depois avaliar o desempenho, e acabou a responder nos tribunais por uma negligência que não foi dela, enquanto o verdadeiro (ir)responsável alega falta de memória, remetendo a sua responsabilidade para os seus inexistentes registos. Quem registou lixou-se, quem não fez nenhum safou-se.
O mesmo acontece com os pedidos de observação dos doentes. Há um mesmo médico (ir)responsável pelo doente, e que pede um parecer à especialidade x. O médico da referida especialidade dá um determinado parecer por escrito. O doente não é depois devidamente avaliado, e a coisa corre mal, e acaba de alguma forma nos tribunais (inapelavelmente muito, muito tempo depois...).
O médico (ir)responsável só escreveu até pedir o parecer. Depois do parecer, o processo clínico é um deserto.
-"Então o Dr não observou mais o doente depois de ter pedido este parecer ao seu colega, nos 3 dias seguintes, até o doente ter morrido?"
-"Não me lembro"
-"Mas não escreveu no processo"
-"Escrevi, até pedi um parecer ao especialista x!"
-"Mas então o que é que aconteceu ao doente depois de ter sido observado pelo seu colega"
-"Isso será melhor pedir ao meu colega, eu pedi-lhe um parecer porque achava que ele tinha uma doença relativa à especialidade dele"
-"Mas tinha?"
-"Foi o que escrevi, por isso lhe pedi o parecer"
-"Mas então o que aconteceu ao doente depois?!"
-"Deve ter havido uma complicação no contexto da especialidade desse colega, por isso é que pedi o parecer"
Quem é que se vai sentar no banco dos réus?...
Como estes, tantos outros exemplos que haverá por esses hospitais fora....
O mundo é mesmo um local perigoso. E a "Justiça" é uma espécie de placebo das nossas consciências, quando não uma iatrogenia!
E os nossos antepassados, raios os partam, deixaram-nos uma sociedade de pantanas entre mãos. Escondem-nos isso até bem tarde nas nossas vidas, deixando-nos crescer com a impressão que há alguma arrumação social tendencialmente meritocrática.
Mal de quem se vê envolvido nas malhas destes processos.... Diz-me a experiência que os realmente maus não costumam ter problemas. São autênticos fantasmas. Os bons, aqueles que aparecem, que assumem, que escrevem, é que se lixam sempre.
É a vida....
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