sábado, 7 de janeiro de 2012

"O Amor à Camisola": Retrato de uma Insatisfação Colectiva


"O Serviço Nacional de Saúde funciona 24 sobre 24 horas, 7 dias por semana, semana após semana. Como é isso é feito?
Os enfermeiros e os auxiliares trabalham por turnos. Os médicos não.


Os médicos têm um horário “normal”, X horas por semana (35, 40 ou 42 horas, conforme o regime de trabalho), em que fazem tarefas “normais”: cuidam dos doentes internados nas enfermarias, fazem consultas, exames complementares, cirurgias.... Dentro dessas horas “normais”, estão incluídas 12 horas de “urgência”. São horas em que prestam serviço nos Serviços de Urgência, Unidades de Cuidados Intensivos, Urgências Internas de apoio aos serviços, etc...


Porém, as 12 horas semanais de “urgência” de todos os médicos não chegam para assegurar o funcionamento 24 sobre 24 horas, 7 dias por semana, semana após semana, de todos os serviços de saúde que não podem parar.
Por esse motivo, há mais de 30 anos que, por lei, os médicos podem ser obrigados, mesmo que não queiram, a fazerem até 12 horas extraordinárias de trabalho por semana.


O problema é que, mesmo essas 12 horas extraordinárias de todos os médicos não chegam para assegurar o funcionamento 24 sobre 24 horas, 7 dias por semana, semana após semana, de todos os serviços de saúde que não podem parar.

Então, já há muito tempo, os médicos trabalham o seu horário semanal habitual, trabalham as 12 horas extraordinárias a que são obrigados por semana, e, muitas vezes, trabalham ainda mais períodos de 12 ou 24 horas extraordinárias a que não são obrigados, mas a que se dispõem mesmo assim. Porquê? Por motivos de dois tipos:



1) motivos financeiros: as horas extraordinárias são pagas a um valor que permite aos médicos aumentarem o seu vencimento mensal.
2) “amor à camisola”: os médicos trabalham para instituições às quais sentem pertencer. O prestígio da instituição é o seu prestígio. O desprestígio da instituição é também o seu. Quando um colega lhes diz “tenho um buraco na escala de urgência da próxima semana, não me fazes um favor e fazes mais 12 horas?”, com frequência dizem que sim, por sentirem ser um pouco o seu “dever” assegurar o funcionamento sem falhas da “sua” instituição.


O problema é que este “amor à camisola” já há alguns anos que não existe, que é passado. Porquê?
Os médicos deixaram de pertencer ao “quadro” do hospital, passaram a ser contratados a Contratos Individuais de Trabalho. As vantagens não financeiras desapareceram (ADSE, apoio na doença, segurança no trabalho e nas regras de contratação, etc..). Deixou de haver impedimento às mudanças de médicos de um hospital para outro, o que passou a acontecer com frequência. Passaram a trabalhar nos hospitais, nomeadamente nas urgências, médicos “free-lance” que fazem 12 horas de urgência neste hospital, 12 horas no outro hospital, sem pertencerem propriamente a nenhum. Os médicos deixaram de “pertencer” a este ou àquele hospital, e passaram a existir no hospital muitos médicos que lá vão trabalhar só umas horas. E daqui a uns meses já são outros.
Desapareceu o “amor à camisola”.
Sobraram os motivos financeiros. Mesmo com estes, sempre foi difícil arranjar médicos para assegurarem todos os serviços, 24 sobre 24 horas.


E agora...
Com o novo Orçamento de Estado, o Ministro da Saúde acabou com este último incentivo às horas extraordinárias. E abriu uma Caixa de Pandora da qual não se apercebeu.


Após anos e anos a fazerem horas intermináveis extra nas urgências, os médicos já não têm agora nenhum motivo para as fazerem. Já não são obrigados por lei a fazerem horas extra. Já não lhes é financeiramente compensador fazerem horas extra. Já não sentem os problemas da instituição como “seus”.


Os serviços não funcionam sem as horas extra dos médicos. Mas estes estão fartos. Aceitaram o corte de 10% no vencimento em nome da crise (como todos os outros funcionários públicos). Aceitaram o corte de 2 ordenados em nome da crise: total 23% do vencimento (como todos os outros funcionários públicos).


E até aceitam o corte no preço pago pelas horas extra.
Só não aceitam é fazê-las."


Dr Tiago Tribolet Abreu "dixit", aqui reproduzido a partir das redes sociais onde foi originalmente publicado, com a sua autorização

3 comentários:

Anónimo disse...

E o milagre vai ser que, mesmo com metade dos médicos do SNS em horas extraordinárias, os serviços vão continuar a funcionar. E aí, os médicos, vão ter que explicar à sociedade o espaço e o encargo financeiro que andaram a imputar à sociedade todos estes anos, em nome de lobbys disfarçados de interesses públicos.
Que me desculpe a metade dos médicos competentes, que trabalham arduamente, os do "amor à camisola" (que ainda os há - bem hajam), mas a outra metade, que gosta de dormir nas urgências de apoio ao internamento, cuidados intensivos e assim, que desaparecem a meio do serviço para dar um pulo ao consultório ou ir almoçar ao outro lado da cidade, vão ter que começar a levantar o rabo da cama durante a noite e aprender a mexer-se melhor durante o dia - é o que está acontecer com todos os funcionários públicos destes país, seria uma vergonha que os cortes não batessem à porta de todos. Tenho dito.

Placebo disse...

O comentador supra não percebeu, os cortes bateram à porta de todos, e os médicos não fizeram alarido particular nessa altura (não mais que a restante função pública, nó máximo...).
A questão é que bateram mais forte na porta de alguns (essa medida das horas extraordinárias é exclusiva do acordo colectivo de trabalho celebrado em 1979 com a classe).
E os problemas estruturais que refere, e que existem (em todos os sectores, não apenas nesse) não se resolvem com esses cortes, a não ser que julgue tratarem-se de serviços escusados.
Enfim, parece-me que está a misturar alhos com bugalhos....

Unknown disse...

O blogue colectivo Aventar está a realizar um concurso para apurar qual o melhor blogue do ano em diversas categorias


Peço desculpa aos nomeados na categoria de Saúde por tê-los nomeado(excepto o blogue Queratocone) mas de facto não seria a mesma coisa se não os tivesse incluído na lista e a fim de uma sadia convivência e maior divulgação da actualidade em saúde para fora dos meios internos e fechados que são estas discussões sobre esta área.

As minhas desculpas ao Doutorenfermeiro, Cogitare em Saúde; Plano de Cuidados; Saudesa; Impressão de um boticário de Província, Juramento dos Hipócritas; SaúdeImpostos ;) e boa sorte a todos.

Para votar devem ir a este Link ( http://aventar.eu/blogs-do-ano-2011/)