quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

João Pereira Coutinho (in Expresso): Os Velhos

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Velhos

Aqui há tempos, o escritor Francisco José Viegas lamentava publicamente o desporto de certas famílias portuguesas que, em plenas festividades, têm o hábito de despejar os seus velhos nas urgências hospitalares. Imagino que o Francisco desconheça a real proporção do fenómeno. Eu próprio desconhecia, mas uma pessoa de família encarregou-se de mo explicar. Só este ano, e no hospital onde ela labuta (como médica), três velhos foram largados no recinto. Um deles trazia bilhete colado ao peito, como se fosse uma criança recém-nascida e recém-rejeitada. Os médicos já nem estranham: recebem as encomendas e dão cama e comida aos pobres. No dia seguinte, começam as formalidades para encontrar os familiares ou, pelo menos, um lar "social" onde os estacionar.

Ouvi tudo isto com certo interesse antropológico e depois perguntei internamente se não haveria solução mais cómoda para o problema. Longe de mim moralizar as famílias e esperar que elas cuidem compassivamente dos seus estorvos; a minha loucura não chega a tanto. Mas questiono se não haveria forma de manter os velhos em casa, com vantagens para as famílias. Creio que sim. Bastava que as famílias deixassem de despejar os velhos no hospital e passassem a cozinhá-los. A medida não é inteiramente original: Jonathan Swift lidou com problema idêntico na Irlanda faminta do século XVIII. E, para Swift, os pobres podiam matar a fome desde que vendessem os filhos no talho. Bem sei que as crianças são mais tenras e saborosas do que carne envelhecida. Mas com o tempero certo, até a carne mais putrefacta pode gerar saborosos pitéus (lembrar a perdiz). Num ano que se adivinha de aperto, a poupança começa em casa.

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2 comentários:

Anónimo disse...

Pois...Agora que a economia europeia entrou num percurso descendente e a sociedade tem incutidos hábitos que não se compadecem com adiar as férias para ficar a cuidar do avô, há que procurar rapidamente soluções eficazes!

Anónimo disse...

Hoje descobri o seu blog, também sou internista devidamente desiludida e exausta com os nossos hospitais, cheios de velhos despejados, de familias arrogantes e de "utentes" cheios de direitos e má educação. Também estou farta de bancos em que o nosso papel é desvalorizado (ignorado!) mas sistematicamente aumentado...Hei-de voltar mais vezes a lê-lo. Se calhar deveríamos fazer um blog colectivo...assim: internistas desmotivados e saturados de maustratos e trabalho escravo...Por exemplo.
Inês, Lisboa.