Aconteceu-me mais uma vez, e como disse anteriormente, olhem que até me esforço....
Antes do mais, o costumeiro enquadramento geral, resumidamente, da qualidade do atendimento aos "utentes" na Urgência onde prestamos serviço (das 08h00 às 08h00 do dia seguinte, por exigência da maioria das instituições). Às 09h00 costuma-se começar com um sorridente "então, caríssimo Sr x, que más notícias o trazem por estas bandas?"; às 17h00 será mais um profissional "boa tarde Sr x, então, conte-me lá do que se queixa?"; às 23h00 um esfíngico "boa noite, o que o traz aqui a esta hora?" (note-se no pormenor do: "a esta hora", já a demonstrar incredulidade face à desproporção da relação consultas/verdadeiras urgências...); às 04h00, bem, já será uma histeria persecutória olheirenta do tipo: "há uma semana? tem febre há uma semana? e lembra-se de vir agora, aqui, às 04h00? logo quando estou aqui eu, no meu turno da noite?".
Enfim, a história da minha vida uma vez por semana, que eu tento contrariar mantendo a primeira forma ao longo do tempo todo, com maior ou menor sucesso.
Mas voltando ao tema de abertura do post, voltei a falhar, meus caros.
Como do costume, lá me apareceu a meio da noite o tradicional "cansaço há um mês", sem mais nada de especial. O quadro clínico, dramatizado pela filha (muito mais do que pelo próprio doente), minou desde logo os alicerces da relação médico-familiar do doente, e desde logo tratei de enquadrar a filha do dito cujo com a setença pré-qualquer-observação, acrescentando: "sabe, cansaço há um mês NÃO É uma urgência". Qual cliché, ela desde logo argumenta que o pai deve "estar muito mal", que o médico de família "não dá conta do recado", que os exames que aquele pediu "ainda vão demorar um semana", blá blá blá....
De paciência cada vez mais minguante, procurando desesperadamente pôr termo àquela conversa antes que a mesma degenerasse seriamente, concluí: "minha Sra, aqui, só vou assegurar-me que o paizinho não tem uma situação a carecer diagnóstico e abordagem terapêutica com carácter de urgência. O resto, vai ter mesmo que ser com o médico de família, com os exames demorados, etc.... Não se fazem abordagens certas nos sítios errados, e ou muito me engano, ou está a fazer o pai perder tempo, assim como as verdadeiras urgências que possam estar na sala de espera a esta hora, a aguardar que eu conclua esta observação!".
E lá fui ver o Sr, após aquilo que eu julgava ter sido mais um inútil exercício de Pedagogia.
Ou seja, mais uma historieta comum, que se vai fatalmente repetindo com todos os que conhecem os meandros do sítio em causa.
Mas afinal voltava-se a tratar de uma daquelas outras historietas, mais raras, que nos prova que nem tudo o que brilha é ouro, e passado pouco tempo, vejo-me a internar o homem no Serviço de Observação por hiperosmolalidade diabética (diagnóstico inaugural).
Tudo encaminhado, chega o doloroso momento de comunicar o sucedido à familiar.
Triunfante, ela excama, babada: "ah, afinal era mesmo uma situação urgente!".
Rasteiro, ainda vislumbrei a eventualidade de lhe responder que não, que o quadro clínico deveria ter sido diagnosticado antes, que o pai deveria fazer análises de vez em quando, e se o tivesse feito, não chegaria à conclusão que tinha diabetes daquela invulgar maneira, mas retrocedi, antes de lhe dar um argumento definitivo para me dar uma estocada final, reconhecendo intimamente a minha imprudente abordagem, grato pela grandiosidade de espírito, inchado de orgulho, da progenia presente, ao não me desancar mais ainda, para além daquela subtil declaração de vitória, que o ingrato destino fez com que ela merecesse.
É a vida....
1 comentário:
Visitei hoje pela primeira vez este blogue e fiquei agradávelmente surpreendido pela clarividência e acutilância das intervenções. Vai para os meus "Favoritos".
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