Vá lá, chamemos-lhes antes os Pecados Boçais, que de mortais têm pouco. Apenas nos tornam um pouco mais sonolentos nessa hipnose do dia-a-dia, que tudo tende a banalizar, a relativizar e a homogeneizar num supremo "é a vida"....
1º: Ignorância/(des)Conhecimento. O pior de todos. Com inteligência ainda há esperança, por pior que sejam os demais atributos;
2º: Vaidade. Os Narcisos da Classe, que por aí proliferam, carcterizam-se por olhar demasiado para o espelho e pouco para o doente. Perde-se em empatia, e sem empatia não há boas histórias, sem as quais não se consegue fazer o bem devido;
3º: Gula. Não são os mais perigosos, mas talvez os mais asquerozos. Aquele pequinho de boquinha espremidinha pela doutorice (in Garrett, ou seria Camilo?...) sobretudo interessado em ganhar dinheiro, e mais dinheiro, sem contemplações pelo sofrimento de quem apenas quer ser tratado, por mais que muitas vezes tenha o dever de o tratar gratuitamente na instituição pública devida. Mas sabe-se, numa Classe que cada vez tem menos classe, que muito guloso acaba por praticamente convidar o "utente" a deslocar-se ao gabinete pagante, se quiser continuar com um nível semelhante de cuidados. Mas pronto, há defeitos piores, ainda que cheirem melhor....
4º: Estupidez. É mau, muito mau, o médico estúpido. Como é um termo de interpretação lata, sublinho que quero nele incluir aqueles profissionais para os quais é tudo simples. Sempre simples, nunca complicado, e tudo o que é complicado é inventado e/ou irrelevante (o "sexo dos anjos", na gíria). Também há uma prole excessiva dessas criaturas na classe. De tal forma que já se conseguem organizar em legiões de simplificadores vocacionados em destruir todos aqueles que "complicam" as coisas. Entenda-se: os que questionam os outros e a si próprios, os que duvidam, os que receiam o erro, os que procuram, os que investigam, os que se preocupam com a eventualidade do simples não ser assim tão verdadeiramente simples, e de se poder tornar complicado para o objecto da simplificação, em última análise: o doente.
5º: Esperteza. O antónimo do anterior, que também não é de todo virtuoso (se desprovido de inteligência), só que pelo menos não atrapalha. Ele é o expert da comitiva na faculdade de, mesmo estando presente no local de trabalho, mesmo estando decididamente a mexer-se de um lado para o outro, respirando, comendo e falando, conseguir ter a relevância prática de um qualquer comatoso. Não faz mal aos doentes, pelo facto de não lhes tocar, ou de o fazer de forma absolutamente asséptica. Totalmente desprovidos de capacidade iatrogénica, não conseguem porém ir além de um ténue efeito placebo. Os doentes acabam invariavelmente tratados por outros médicos, para os quais existem diversos subterfúgios de encaminhamento, que esses espertos tão bem conhecem. É difícil de explicar, mas qualquer médico que faz Urgências neste país sabe exactamente do que (e de quem) estou a falar, metaforicamente. Alguns exemplos para os outros: nunca chamar ninguém com mais de 65 anos (o mais certo é estarem mesmo doentes...); nunca deixar de chamar alguém para ver os nossos doentes (co-responsabilizando-o inocentemente); nunca ter pressa (a pressa leva a mais trabalho, a maior risco de erro, a mais desgaste, ao mesmo salário...); chamar todos os que, decididamente, não têm nada a ver com a nossa especialidade (para os poder encaminhar, dando a ilusão de se estar a trabalhar), e por aí fora. São mais ou menos assim, os espertos aos quais me refiro.
6º: Preguiça. Muitas vezes também é esperto, mas desses já falei. Esta outra estirpe é, apesar de tudo, menos irritante. É aquele que já se fartou desta vida anti-meritocrática que é a nossa (ou que já nasceu assim...), e que chegou à conclusão que não valia a pena ralar-se. É aquele que muitas vezes até é bom colega, e preocupado com os seus doentes, mas que já não se entusiasma, não evolui, estagna e torna-se estagnante para os outros. Tem outros interesses, não sendo necessariamente guloso. Pode tão só gostar de literatura e outras Artes aparentadas, pode ser culto, ou simplesmente gostar mais de PlayStations que das últimas guidelines das doenças que deveria tratar. Muitas vezes acaba ficando estúpido.
7º: Idade. A idade por cá, pela minha constatação, está inversamente relacionada com a capacidade de fazer as coisas funcionarem à nossa volta. Se a isso juntarmos a agravante de, em consequência dessa "coisa" a que chamam genericamente de carreira, os cargos de chefia estarem sobretudo entregues a colegas com uma certa idade, o caso assume contornos de verdadeiro pecado boçal. Entre as chefias às quais me refiro, baloiçamos em geral entre dois extremos. Num deles, o chefe porreiro, facilmente adulável, que cede aos caprichos de todos, que não consegue mandar nada, e pôr nada, muito menos um serviço, a funcionar. Do outro, o incapaz (ou pelo menos não tão capaz quanto pensa) esquizofrénico, cujo delírio está entre ser um Deus do Olimpo que deve ser idolatrado, sob pena de censura, ou que pelo menos nunca deve ser posto em causa, sob pena de persecução. Claro que se aliado a isso tivermos critérios de justiça, tratamento meritocrático de todos os profissionais subalternos, capacidade de organização e visão de futuro, até podemos estar perante um excelente "chefe". Mas os profundamente intrincados complexos da velha geração de Abril incapacita-os de não confundir autoridade com ditadura, e por isso temos que nos contentar entre o inconsequente e o delirante.
É a vida....
2 comentários:
Está giro. Fica a dúvida de saber em que categoria se inscreve o autor, caso seja medico!
Isso, caríssimo Carlos Mesquita, fica ao critério, como não poderia deixar de ser, dos terceiros que têm que me aturar.
Mas, como digo sempre, esforço-me.
Não sendo eventualmente suficiente, já é qualquer coisa.
Ou seja, o mínimo que se deveria fazer ;)
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