Tem menos de 75 anos?
Está a sentir falta de forças num hemicorpo?
Então parabéns, pois é candidato a um AVC "topo de gama".
O AVC "topo de gama" caracteriza-se pelo direito a cuidados diferenciados numa Unidade de AVC, onde se centralizam os cuidados a este tipo de doentes, o que se provou ser francamente benéfico em termos prognósticos, quer estejamos a falar de mortalidade, quer (e sobretudo) estejamos a falar de morbilidade, comparativamente aos cuidados "standart".
Nessas Unidades, os doentes morrem, portanto, menos, e sobrevivendo mais, sobrevivem também melhor, com menos défice funcional, para o resto das suas vidas. Isso por diversos motivos, que são conhecidos, mas que não me parece pertinente estar aqui a escarafunchar (melhor estadiamento, maior intensidade e precocidade no início da reabilitação funcional, maior celeridade na execução dos exames, melhor controlo dos parâmetros vitais, da glicemia, etc...).
O problema, em Portugal e se calhar nos outros países também, é que há relativamente poucas vagas nas Unidades, para muitos AVC's. O que portanto obriga à destrinça entre AVC's "topo de gama" e AVC's "de segunda".
Os AVC's "de segunda" são os AVC's dos (muito) velhos (geralmente >80 anos), e os AVC's dos doentes que, à partida, até já estavam muito mal antes do AVC.
Em suma, os doentes em que não é necessário "investir" tanto.
Claro que esses doentes seriam muito melhor tratados numa Unidade dessas, comparativamente ao tratamento que recebem numa enfermaria convencional, do que aqueles para as quais essas Unidades afinal se destinam. Não que os médicos ou enfermeiros sejam melhores ou mais empenhados, mas porque há mais médicos para menos doentes, mais enfermeiros para menos doentes, monitores permanentes para todos os doentes, e cuidados centralizados para esses doentes.
Diria mesmo, e sem me enganar, que o benefício relativo nesse grupo de doentes até seria seguramente maior, do que numa população de menor risco, como a que no fundo caracteriza a indicação para entrar numa dessas Unidades.
Ou seja, os que estão mais fragilizados são os que recebem menos cuidados. Porquê? Porque estando mais fragilizados, têm seguramente pior prognóstico à partida do que os outros, e logo potencial de recuperação menor. Ou seja, são brindados com a facultação de cuidados "de segunda", que é para recuperarem ainda menos, e/ou morrerem mais. Peço perdão: para recuperarem e morrerem como dantes, ou como "sempre"... (para verem que o politicamente correcto é um exercício permanente, também nas linhas deste blog).
O mais engraçado é que durante muito tempo, esses "critérios" de admissão, não publicados mas conhecidos de todos, não me chocaram e pareciam lógicos, dada a desigualdade na correlação: capacidade de facultar cuidados altamente diferenciados versus número de candidatos a esses cuidados.
Revendo a coisa com cuidado, é uma perversão. E mais uma machadada na pouca dignificação que se atribui a essa coisa, que é a recta final da vida.
O que só me leva a reforçar a minha convicção de, nos dias que correm, e com tendência a piorar cada vez mais para o futuro, o melhor mesmo é não chegar a "muito velho", particularmente se não se estiver abençoado por uma salvadora demência moderada a severa.
Por isso, caro leitor, olhe bem para todas as perspectivas (...nomeadamente a do seu avô), e pense duas vezes antes de prevenir essa sua aterosclerose.
PS: claro que se o "muito velho" se chamar Mário Soares ou Manuel de Oliveira, e apesar do manifesto desinteresse público em investir o que quer que seja em qualquer uma dessas personalidades, o critério de admissão ajusta-se (ver alínea 1: ponderação de país terceiro mundista).
2 comentários:
Preocupa-me esse desinvestimento nos "muito velhos", a vários níveis.
Desde o estado do espaço físico à qualidade dos cuidados prestados pelo pessoal médico e sobretudo de enfermagem nos serviços de medicina ou traumatologia, dependendo da tipologia hospitalar - as que por norma, recebem um maior número de cidadãos da Idade Maior - que mais não são que verdadeiros depósitos de pessoas tratadas com a maior das incúrias; Como me indigna e repugna que médicos de família possam prescrever medicação a um paciente que não vêem há mais de 10anos, mesmo sabendo da manifesta sintomatologia de distúrbios organicos, funcionais ou de demencia.
Seria possível deixar-me aqui a indicação do documento a cuja alínea 1 se refere? Se o mesmo estiver disponível na internet, agradecia o link.
Obrigada
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