Que se pode ler aqui na versão original.
Tradução tosca do post desse blog:
Le sourire de l’ange (o sorriso do anjo)
Habitualmente, não colocámos coisas pessoais
neste blog. Mas isto faz parte de uma batalha pela liberdade. O meu pai
morreu. Fiz um pequeno texto para o seu enterro, e aqui está ele, as palavras
são as minhas armas. Que aqueles que puderem comover-se com elas meçam a sua
importância.
(...)
Auvers-sur-Oise,
27 de Junho.
Em
primeiro lugar, obrigado pela vossa presença, nesta igreja de Auvers, que ele
amou, pintou e copiou, na sombra inquieta de Van Gogh, do qual não tinha, e
provavelmente ainda bem para nós, o génio, mas certamente uma parte da doçura e
da ansiedade.
Morou
durante muito tempo na casa aqui em baixo, cujo jardim subia quase até aos
degraus da igreja, e foi a sua verdadeira última casa: um dia, há um mês atrás,
ele esperava por um taxi para regressar. Ele via do seu jardim o sino,
quadrado, imóvel, sereno, que acalmava a sua necessidade de linhas simples,
calmas e ordenadas. Ele sempre preferiu pintar ruas ao invés de paisagens, e
paisagens ao invés de pessoas. Talvez porque precisava de eternidade, ou talvez
apenas porque mexia menos....
O papá
era crente, mas não propriamente católico. Ia à missa para fazer prazer a Marie-Pierre,
a minha mãe, porque ele dizia que se podia bem perder uma hora por Deus, e
porque pensava in petto que nunca se sabe, é sempre importante ter dois ferros
no fogo. Guy guardava da sua juventude, quando era pastor, uma grande ternura pela
a noite. Dizia-nos que não devíamos ter medo da noite, que a sua estrela, a
estrela do Pastor, a primeira a aparecer, estava lá para nos proteger. A lição
perdura, eu espreito-a pela noite, quando saímos das luzes da vila, e falo dela
aos meus filhos.
Com a
doença veio o medo. Ele passou a temer a chegada da noite, já não contava o
tempo em dias, mas sim em noites, aterrorisado pela chegada dos pesadelos, das
recordações de mortos, da guerra, dos mil pequenos sofrimentos e dos terrores de
infância que enterramos na nossa vida adulta, e que voltam para nos assustar no
final. Ele nunca tinha falado disso, foi preciso esperarmos por estas últimas
semanas para o descobrirmos, incoerentemente, com ele a falar desses fantasmas
do passado enquanto tremia, fora de si, aterrorisado.
É uma das
grandes lições que retiro destes
últimos dias, e que temos que perceber, nós e os seus netos: não se deve
guardar no fundo de si próprio os nossos terrores minúsculos, eles devem ser
falados, dominados, para nos podermos eventualmente livrar deles, ou pelo menos
para podermos viver com eles. O papá não soube, e elas vieram à superfície
quando ele já não podia lutar, e asseguro-vos que o medo que ele ressentiu foi
horrível.
Não são
coisas que se digam, mas quem o dirá então? A sua agonia foi terrível. Após 16
anos de doença de Parkinson, o seu corpo fechou-se sobre ele próprio, foi morto
e enterrado num envólucro que já não era o seu. Temos que medir esta descida ao
inferno degrau a degrau. A primeira vez que ele não conseguiu pintar. A
primeira vez que ele perdeu o equilíbrio num escadote. A primeira vez que ele
entornou o seu copo sem o conseguir apanhar. A primeira vez que ele não teve
tempo de chegar à casa de banho para fazer as suas necessidades. A primeira vez
que ele mexia demasiado para conseguir falar ao telefone. Doença horrível, que
num mesmo dia faz com que se mexa ora demais, ora de menos.
Mas ele
ainda não tinha visto nada. Depois teve que suportar a humilhação de usar
fraldas, de ser despido pelos seus filhos, de se fazer limpar as partes íntimas
por desconhecidos, de ouvir enfermeiras dizer-lhe ao ouvido "então, o Sr Johannès comeu
bem? Acabou o seu iogurtezinho"? Mais ele se tornava acamado, mais as
pessoas pensavam que ele era surdo e demente, o que estava errado. Uma das
últimas vezes que ele conseguiu comer com colher, em boa verdade uma das suas
últimas refeições (um blédina com gosto de brioche), perguntei-lhe se estava
bom, se estava quente, todas essas coisas idiotas que se dizem quando damos de
comer a alguém que não diz uma palavra há dois dias. Ele apenas me respondeu
"arheu, arheu", imitando um bebé, com esse terrível sentido de humor
muito negro, de gosto muitas vezes duvidoso, e que foi uma das coisas
incontestáveis que ele nos legou.
Depois,
claro, as coisas ainda pioraram. Ele queria morrer em casa, junto de nós.
Retirámo-lo do Hospital, um sítio bem limpo, perto daqui, e o médico disse-nos:
"sois admiráveis, agora desenrascai-vos". O papá queria morrer. Ele
tentou uma vez, mas mesmo isso foi-lhe recusado. Ele já não podia falar, quase
não conseguia abrir os olhos, mas ouvia e percebia tudo. Imaginem esse longo
pesadelo, o que deve ser estar fechado no seu próprio corpo, num silêncio
constrangido, de não conseguir mexer as pernas, de não conseguir comer, de já
nem conseguir aspirar um pouco de sumo de laranja por uma palha, e finalmente
de ficar com as mandíbulas fechadas para sempre, sem conseguirem abrir-se,
terminando com a última réstia de contacto com o exterior.
E ele
estava lá dentro. Duas semanas. A contar os dias e as noites. Dopado com
morfina, acordando de sonos perturbados, à espera semi-consciente de ficar
ainda pior. Eu sei que ele pensava "mas o que é que vocês estão a
fazer"?! Fizemos o que pudemos, era o que lhe dizíamos. Por vezes aparecia-lhe
uma lágrima, e nós chorávamos por ele.
Em
França, a eutanásia é proibida. Fomos um dos últimos paises da Europa a abolir
a pena de morte, seremos um dos últimos a legalizar a eutanásia, mas a
contradição é apenas aparente. Não se morre de doença de Parkinson. O papá
tinha um coração de ferro e pulmões de atleta, e poderia ter vivido um século.
Em França não se abrevia o sofrimento, alivia-se. O papá não conseguia mais
comer nem beber? Deu-se-lhe morfina em doses altas, e esperámos que ele
morresse de fome e de sede.
Vocês
conseguem medir o horror e a barbárie de tal coisa? Hipócrates teria querido
isso? Que todos os que amavam Guy não esqueçam o seu calvário, ele aderiu a uma
bela associação, e eu também, que milita pelo direito a morrer com dignidade. É
uma bela iniciativa, mas que lhe foi interdita. A lei Leonetti de 2005 deu um
passo em frente, mas um passo apenas. Que cada um de nós, com os seus meios, se
batam para fazer avançar as coisas. Em memória do meu papá, mas também por nós,
para precavermos o que o futuro nos reserva.
Agora ele
finalmente encontrou paz. O papá era crente, meio budista. Ele acreditava em
espíritos, na reincarnação, no anjo da guarda. Um dia no Hospital ele
suplicou-nos que parássemos os calmantes, porque ele dormia sem sonhos e já não
podia ouvir o seu anjo da guarda. Nos útlimos dias, a angústia tinha afastado o
anjo. Estou bem certo que ele hoje paira à nossa volta, com um sorriso
misterioso como aquele que se pode encontrar na catedral de Reims, e que o papá
gostava tanto.
(...)
1 comentário:
Eu quero, para mim...
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