sábado, 23 de outubro de 2010

Tomates

Ou falta deles.
Passo a concretizar esta reflexão:
Há doentes maus, idosos, com muitas doenças, com muita dependência de terceiros, com muito pouca ou nenhuma vida de relação.
Isso leva, à chegada ao Hospital aquando de uma intercorrência, ou de uma agudização das suas diversas cronicidades, ou do simples evoluir mais ou menos lento das suas patologias irreversíveis de base, a ponderar qual o grau de "investimento" que se deve fazer nesse caso particular.
Porquê? Porque não se pode oferecer tudo a todos, ou, por outras palavras, o melhor em termos de cuidados a todos. E deve-se racionalizar, para se oferecer o melhor aos "melhores" candidatos.
Isto, não só não é criticável, como é altamente louvável, na minha perspectiva. Ou seja, não faz sentido nenhum, num caso extremo para facilitar (isso depois complica, e muito, lá mais pelo meio...), ventilar um velhote com insuficiência respiratória crónica, a fazer oxigénio domiciliar ou VNI, demente ou vegetativo após um AVC, sem vida de relação com o meio circundante, acamado.
Mas PODE-SE fazer. Seria bom, na perspectiva de o manter vivo, fazê-lo. Mas isso implicaria assumir que passava a haver lista de espera nas Unidades de Cuidados Intensivos deste país (o que, já agora sublinhe-se, é incompatível com a sobrevida dos candidatos). Ou seja, quem calhasse de precisar delas numa das raras alturas em que haveria vagas safava-se, os outros todos, paciência. É um critério (a "ordem de chegada"), que até poderia ser resolvido eficazmente se passasse a haver mais UCI's e intensivistas do que centros de saúde e médicos de família, e descobríssemos petróleo, muito petróleo, no nosso subsolo (que financiasse esses caríssimos centros de tratamento).
Não se faz assim, "guardam-se" as vagas para aqueles candidatos com "doença à partida potencialmente reversível", e com "bom estado potencial" após a estadia. E quem fala no caso extremo dos cuidados intensivos fala de outras unidades especializadas (coronárias, AVC's...).
O problema está, não no bem maior que se pretende em guardar as limitadas vagas para quem mais beneficia delas, mas sim com o que se faz com os "candidatos chumbados". Ou sobre os argumentos que por vezes inventamos para justificar o chumbo.
O mais clássico de todos é fingirmos estar a fazer "bem" ao doente, não porque ele está no final da vida e tem todo o benefício em não lhe prolongarmos o sofrimento, mas sim porque o "tubo", de repente, passa a ser uma "violência", ele passa a precisar de "tranquilidade" e não dos "catéteres" (coisas inúteis que por lá se põem) e do "rebuliço" de uma unidade daquele tipo.
Pior: muitos não assumem sequer que o doente é para deixar de molho, confortável, paliado, efectivamente sossegado, e seguem a prescrever antibióticos, oxigénio, alimentação, monitorização, e tudo o mais que se lembrem, como se de repente lhes desse um súbito assomo de consciência ou arrependimento.
Ou seja, o que me aborrece são os decisores de consistência (e consciência) interrupta e/ou lábil. Que acham que uma determinada pessoa não é para investir assim tanto, mas na qual se deve investir assim-assim. Que fingem que cuidados mais invasivos, MELHORES, passam a ser cuidados maus para um determinado candidato, mas que já não é mau prolongar-lhe a vida não-invasivamente.
Se a ideia é prolongar a vida, prolongue-se o melhor que se sabe e pode. Se a ideia é não prolongar o sofrimento, então... não se prolongue o sofrimento, trate-se o sofrimento e deixe-se a doença seguir o seu curso. Se a doença é má mas a intercorrência é reversível, trata-se a intercorrência com o melhor que se pode. Ou então: se a doença é má, e a intercorrência reversível, então não se faça nada e deixe-se a intercorrência levar esse doente mau. São duas posições legítimas, desde que minimamente coerentes num determinado espaço e tempo.
Agora, não se trate a intercorrência assim-assim, porque a doença de base é má. Nem se passe a tratar todas intercorrências, independentemente das doenças de base.
Estas dúvidas existenciais saem mais baratas ao contribuinte se tratarmos o decisor com uma benzodiazepina, oferecendo-lhe de seguida a possibilidade de uma retemperadora noite de sono.
E o doente, podem acreditar em mim quando o digo, agradece.
Mas lá que isto ainda anda perigoso demais para eu morrer com um mínimo de "segurança", ai isso anda.

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