sábado, 30 de agosto de 2008

Tiques

Dito com a satisfação pela faculdade que me é cada vez mais rara, ainda me vou conseguindo chocar de vez em quando neste pequeno rectângulo.... Alguma alma iluminada, certamente após aturado raciocínio por detrás de uma secretária de um qualquer ministério oculto, decidiu que os doentes fumadores deixam de poder fumar quando ficam doentes. O motivo da coisa? Induzir a cessação tabágica? Só se for durante o internamento. Limpar o ambiente? Ninguém diz que poderiam fumar em locais agora proibidos. Nada disso. E eu arrisco: uma questão de estilo, de imagem, ou se quiserem de "princípios". Fumar faz mal à saúde, por isso não se deve fumar no Hospital e arredores enquanto se está nele internado. Direito à auto-determinação? A fazer o que bem se entende com o seu corpo e a sua saúde (entenda-se, sem maior ambição: a ser tratado, ainda que a fumar)? Questiúnculas parasitas da inevitável conclusão. E ainda vá lá que não se obrigue as criaturas a assinar um documento em como deixam de fumar por um determinado período de tempo, sob pena de pagarem uma multa ou ainda de verem recusado um, ou dois, internamentos próximos, quando estes se justificassem. E a questão do sofrimento que se induz numa pessoa que deixa de poder satisfazer uma dependência física e psicológica, para mais numa altura já de si delicada (estando doente), são amendoins para toda esta gente. O ridículo aproxima-se do seu zénite quando falamos de alcoólicos. Qual é o médico que não adora ver a clássica evolução destes seres em regime de internamento: primeiro a discreta ansiedade, o pedido inocente de alta ("doutor, eu acho que já estou bom; posso-me ir embora?"). Ainda com discursos relativamente normais, quando progressivamente, cada vez lá mais para o fundo de um estado de consciência prestes a extinguir-se, começam a tremelicar cada vez mais, já nem se preocupam em fingir lucidez, até que chega o sublime delírio; é vê-los a tentar apanhar moscas inexistentes e outra bicheza que tal (a hilariante zoópsia...), a serem amarrados à cama, quais seres possuídos numa mais ou menos boa "mise en scène" do Exorcista, a serem sedados com doses recorde de benzodiazepinas (eu ontem "dei-lhe" 120mg de diazepam, e o homem ainda conseguia arrancar a cabeceira da cama!), a perturbarem a enfermaria num raio variável, a suarem que nem desalmados, em hipertermia, por vezes a convulsivar em delirium, a vomitar e até, quem sabe, a morrer de uma pneumonia de aspiração induzida por essa recusa terminante de, obviamente, se dar um copito de tinto a cada refeição a estas amaldiçoadas almas. É verdade meus senhores, não seria preciso embebedar as animálias, bastaria dar-lhes um mínimo de álcool que evitasse a espectacular privação que tanto gostamos de induzir. Mas não. Também não se pode beber. Não que isso vá favorecer abstinência subsequente. Porque não vai. Não que isso seja, nessa altura ou futuramente, bom para a saúde do ser em causa. É sobretudo perigoso para a saúde. E já agora, o que pensam os doentes (no início, na tal fase ainda lúcida) disso tudo? Estamo-nos todos bem a cagar para isso! Aliás, diria mesmo que dum Hospital, depois de lá se entrar, dificilmente se sai. Ainda pasmo com o paternalismo (...para não usar outro termo) de certos colegas meus que ponderam, seriamente, sedar indivíduos e mantê-los internados, só porque esses defendem uma ideia de futuro próximo que não passe pelo ideal de reconstituição de saúde defendido pelo mesmo profissional. Ainda que perfeitamente conscientes e com o juízo que Deus lhes deu. Mas nem tudo são más notícias. Se for heroína, faz-se uma substituição como deve ser, e com elemento aparentado. Este país, ainda que por vezes não o reconheçamos, continua a ser muito perigoso para a individualidade que cada um de nós constitui. E essa liberdade individual, que ingenuamente julgamos ser um dado adquirido nos tempos que correm, não passa ainda, em demasiadas circunstâncias, de mera ilusão, bastando para a respectiva desilusão uma pequena confrontação com certas realidades, que todos teimamos em continuar a não encarar de frente.

1 comentário:

Pearl disse...

Gosto muito de o ler. Sobre este texto direi apenas "irrepreensível"!