sábado, 9 de agosto de 2008

Tem ALTA!

Eis o maior impropério que me acusam de proferir, de há longos anos a esta parte: "tem alta". Muitos dos familiares de doentes, por vezes até alguns doentes, entendem esta afirmação como a suprema declaração de "desprezo médico" (eu não diria "negligência", neste caso...). Dois lados, como do costume; diria mesmo três, neste particular: -O meu, em que sou pressionado a diagnosticar depressa, a tratar mais depressa ainda (e a tratar enquanto diagnostico, de preferência), e a mandar embora o doente assim que ele começa a respirar. Para assim poder receber outro, e desimpedir os corredores da Urgência, desimpedindo os quartos da minha enfermaria. E ter uma boa "estatística", ainda que nesta proto-meritocracia ninguém ligue ainda muito a esse e a outros índices de "produtividade" que tais. -O de alguns familiares de doentes, que com o internamento de casos difíceis de gerir em casa, polimedicados, multi-patológicos, ou simplesmente hiper-dependentes nas actividades da vida diária, ou de atenção, e ávidos consumidores da paciência dos que os rodeia, vêem ali a "golden oportunity" para se livrarem do trambolho, temporaria ou definitivamente (para um lar ou equivalente celestial). -O dos doentes, geralmente alheios a todas essas pressões, que em regra apenas pretendem pôr-se bons ou pelo menos melhores, excepto aqueles poucos casos cuja tristíssima vida os leva a achar acolhedoras as instalações medievais da média dos nossos hospitais, e o amadorismo da maioria dos serviços que neles se prestam, no dia-a-dia. Um caldinho explosivo, como facilmente se adivinha. Aprendi a lidar com a coisa: -Aviso precoce da alta, para mentalização precoce e melhor aceitação; -"Ameaça" permanente de alta; as pessoas preferem que uma ameaça precoce seja adiada do que uma surpresa, ainda que tardia, se confirme; -Compensações: tem alta E VEM para consulta brevemente; a alta da consulta é menos dolorosa, e pode ser considerada mais um degrau na instalação da "dor" de voltar a receber um familiar incómodo em casa. Agora mais a sério, sendo que brincando-se se podem transmitir conceitos muito reais: a percepção de não ter que haver restitutio ad integrum no momento da alta ainda não é familiar de muitos portugueses; o doente não tem que ter alta saudável, mas sim logo que puder continuar o seu tratamento no domicílio, para se curar definitivamente lá; por outro lado, a família tem que se adaptar e estar preparada e mentalizada para se adaptar às novas disfuncionalidades do doente internado, nem que seja prevendo a sua transferência para uma instituição, em caso de incapacidade em lidar com isso em casa (e nunca, nunca achar que cabe ao "Hospital" a resolução do problema social do seu familiar). Nuances? Muitas, tantas que ficaria a escrever aqui a noite toda e não as esgotaria. Só para ainda referir duas: às vezes, as altas são precoces (medicamente falando - e não na perspectiva familiar), o doente tem que voltar por ter agravado o seu estado de saúde no domicílio, e teria beneficiado em ficar mais alguns dias no Hospital; mas noutras, é tardia, e o doente agrava por se infectar (entre outras coisas) na instituição, seja como for agravando o seu estado de saúde, e enriquecendo escusadamente os sempre excessivos números de iatrogenia, por infecções nosocomiais ou outros motivos. No equilíbrio está a virtude. Mas ninguém é perfeito.

1 comentário:

Maria disse...

> "tem alta". Muitos dos familiares de doentes, por vezes até alguns doentes, entendem esta afirmação como a suprema declaração de "desprezo médico"

Tem piada, estava convencida que era exactamente o contrário, mas é claro que não tenho dados científicos a sustentar esta minha opinião …