Uma criança está doente, corre risco de vida e precisa de um transplante com uma medula o mais compatível possível, é filha de uma estrela de futebol e, como tal, o seu drama comoveu o nosso pequeno mundo rectangular à beira-mar plantado.
Somos muito hipócritas, todos, quando nos julgamos bons samaritanos ao mobilizarmo-nos neste caso, como se não existissem outros semelhantes, todos os dias de todos os meses, há muitos anos a esta parte.
Por isso não se iludam: os que doarem a sua medula por terem sido chamados à atenção neste caso particular (nunca tendo sido sensibilizados para esta questão), e mantiverem disponibilidade futura para casos sobreponíveis, bem como os que já antes doavam, esses sim, mas só estes, são verdadeiros e dignos altruistas, merecedores da nossa admiração e respeito. Porque são maiores, e tão maiores, ainda que anónimos, que a esmagadora maioria miudinha que os rodeia.
Todos os outros são patéticos indivíduos que se vão incomodar apenas e só para fazer o frete da moda, por se tratar do filho de um futebolista famoso, imbuindo-se de uma moralidade que não têm nem passarão a ter.
Ou seja, não são altruistas, não são melhores que os outros, aliás não valem mesmo um chavelho, numa perspectiva social e global de cuidados de saúde, e estão-se a marimbar para todas as crianças e adultos que, desde sempre e para sempre, se depararam, deparam e depararão com este e outros problemas semelhantes, em que o seu destino vital passa por haver uma dádiva orgânica de alguém a troco de nada (seja sangue, um rim, medula, e por aí fora...).
E isto é um sintoma nauseante de hipocrisia, esse exercício travestido de benevolência, que não deixa de me revoltar as entranhas.
Posto isto, que Gustavo viva muitos e bons anos com saúde e sem leucemia, e que os seus pais tenham a possibilidade de lhe dar todo o amor que ele merece, e que este sofrimento de ter um filho em risco de vida, que ninguém devia ter que padecer, tenha fim a curto prazo. Assim dito, com a sinceridade de um Pai, e com a empatia de quem espera nunca ter que passar por calvário sequer parecido.
O Gustavo, MAS TAMBÉM o Miguel, o Pedro, o João, o Paulo, o Gonçalo, o André, o Nuno, o Diogo, o Fábio, o Tiago, o Abel, e todos os (muitos) outros que existem e de quem não se fala, e todos os seus sofredores pais, que não têm a bênção mediática de Carlos Martins.
Estes sofrem, e às vezes morrem, na sombra onde sempre me encontrei.
Talvez seja só por isso que me ofusca tanto, nestes dias, este tão iluminado tema da nossa praceta....