quarta-feira, 28 de novembro de 2007

A Experiência

A "Experiência" está agónica. E ainda bem. Na minha prática clínica, sempre que fui ouvindo evocar a "Experiência", foi quase sempre pelos piores motivos, para justificar actos obsoletos ou injustificáveis, ou para pôr termo a discussões à falta de melhor motivo. A "Experiência" é, assim a modos que, o resquício da Medicina Tradicional (que o meu amigo Choque Céptico bem retrata no post anterior...) a subsistir no organismo da Medicina Moderna, e científica. É um cancro, benigno, localizado e em vias de exérese. Vive sobretudo em pessoas desactualizadas, por isso sobretudo naqueles com uma certa maioridade cronológica. A "Experiência" surge quando não se conhecem as orientações actuais, e nos vemos confrontados com as "novidades". É aqui que surge a Experiência de cada qual. "Eu sempre fiz assim", e "com óptimos resultados". Eu "acho" que isto "não está suficientemente testado" para ser adoptado. "Eu (, que já tratei x casos desses,) sempre me dei bem desta maneira". Não interessa nada que exista evidência científica em contrário, a assinalar que outro procedimento é o mais correcto. E que essa evidência científica signifique geralmente muitas "Experiências", com a vantagem de haver limites nos viés de interpretação e uma cobertura muito mais acertiva de todo o âmbito daquilo que é testado. Ciência, no fundo. Versus a ambiguidade da opinião de cada um. Um dia ouvi um Professor dizer, e ouvi-o com prazer, que a opinião de peritos é, cientificamente falando, um nível de evidência C. Leia-se, pior que B e A. E não existe D.... E nem todos somos "peritos". Ou seja, venham os estudos randomizados contra placebo e duplamente cegos, e venham as guidelines com níveis de evidência. E morte à "Experiência", de uma vez por todas.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Medicina Tradicional

domingo, 11 de novembro de 2007

Legados

Fala-se pouco em Medicina, nos tempos que correm, no "Serviço Público".
O médico acorre ao Hospital quando há uma catástrofe?
O médico não regressa a casa porque tem um doente instável?
O médico sacrifica 24 horas da sua vida pessoal numa Urgência porque alguém adoeceu ou faltou?
Serviço Público? Não, é um benemérito. E é um benemérito porque já se interiorizou que, afinal, não passa de um Funcionário Público, mais que um Servidor do Público. Muito por culpa dos governantes sucessivos. Muito por culpa de invejas corporativas de vários sectores da sociedade actual.
E o que deveria ser natural e óbvio, naquele cuja profissão é ajudar o próximo na doença e no sofrimento, é afinal, e cada vez mais, um acto desempenhado por força de um contrato com uma entidade (que não o doente) dentro horário de trabalho, ou, se fora dele, por benevolência.
Mas os médicos também não têm culpa neste estado de coisas?
A saúde evoluiu muito nos últimos anos, e também por culpa dos médicos, mas não terá falhado algo?
Falhou. Falhou a cegueira para com a sociedade, que permitiu que se instituíssem vícios de incumprimento por parte de uns, em termos de horário e de desempenho. Que permitiu que o parasitismo de uns fosse tolerado pelos outros todos. Que permitiu uma promiscuidade com a indústria farmacêutica muito para além do aceitável por parte de alguns.
E uns, ou alguns, numa sociedade mediatizada, é tido como o todo.
E o todo é de facto culpado, pela incapacidade demonstrada em controlar alguns.
E é este o legado às gerações de médicos vindouras:
-Ser tido no seu todo como sendo representativo da parte;
-Ver o seu desempenho avaliado por quem não é médico (em contraponto à ausência de controlo e avaliação eficaz de antes);
-Ver limitada a flexibilidade de horário que se desejaria;
-Ver limitado o contributo que a Indústria Farmacêutica poderia dar em actividades realmente importantes para a formação pós-graduada;
-Ver comprometida a estabilidade contratual para com as diferentes entidades do estado (em contraponto aos dias de hoje, em que não se indentifica ou consegue punir os "parasitas" do sistema).
Há que olhar em primeiro lugar para o umbigo, e mais que uma fatalidade circunstancial, o que aí vem (e que já tem vindo, cada vez mais, ao longo dos anos) é também uma consequência de uma geração que falhou.
É um legado.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Consulta-Expresso

Face à óbvia possibilidade de se aumentarem os índices de produtividade (dos que agora não produzem), e às imensas potencialidades de optimização dos diferentes sistemas de prestação de cuidados de saúde, por vezes, surge o patético....
Como uma recomendação administrativa recente que me chegou aos ouvidos, e que faz constar:
-Devem as primeiras consultas (aquelas em que não se conhece o doente de lado nenhum...) durar um máximo de 20 minutos e as segundas (aquelas em que o mesmo já foi visto anteriormente) durar um máximo de 10 minutos.
Interessante, pensei, exige-se aquilo que, trabalhosamente, demoro cerca de 3 vezes mais a fazer. Inépcia? Vamos considerar higienicamente que sim, um pouco, mas mesmo convertendo-me num profissional virtuosi do cronómetro, não almejo, francamente, conseguir alcançar o dobro do tempo exigido, e julgo que com défice de qualidade.
Ou seja, ou não sei fazer as coisas como deve ser, ou é estapafúrdio o dever considerado.
Por isso pensei como havia de fazer à minha vida, para o caso de me ameaçarem com o despedimento em caso de incumprimento.
E então será mais ou menos assim (neste exemplo, uma segunda consulta):
-Sr. X ao gabinete 8!
-...
tic tac tic tac
-Bom dia Doutor!
-Bom dia, já vamos num minuto de consulta, faltam 9 como pode ver por este cronómetro, por isso passe para cá os exames depressa e diga quais são as suas novas queixas.
-Bem, agora tenho esta falta de ar, bzz, bzz, bzz...
tic tac tic tac
-(após leitura e registo dos exames) Então aquelas dores articulares de que se queixava, melhores?
-Sim, sim, mas apareceu esta falta de ar...
-Bem, isso da falta de ar é melhor falar ao seu médico de família, e se ele achar necessário, nos 10 minutos dele de consulta, então há de fazer um pedido para ser observado aqui. Mas está melhor das dores articulares, muito bem....
-Mas é que fico muito aflito, e tenho ainda esta dor no peito, será que não me podia investigar estas queixas?
-Posso, mas já vamos em 6 minutos de consulta e ainda não escrevi nada no processo da consulta, mas vá falando, vá falando...
-Bzz bzz bzz...
tic tac tic tac
Triiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiing!!!!
-Pronto, já está, então aquilo das dores articulares eram aparentemente apenas umas artroses, continue a medicação, e qualquer coisa, já sabe, é só pedir ao seu médico de família que o referencie a esta consulta.... (sorriso)
-Mas então e estas queixas que lhe estive a contar, o que acha?
-Bem, é como lhe disse, é como o seu médico de família entender... (sorriso mantido)
-Ah... pronto, está bem. Podia-me passar uma receita para os remédios?
-Sr Y ao gabinete 8! ... ah, meu amigo, isso devia ter pedido aí um par de minutos antes do final da consulta, agora já estamos no tempo do doente seguinte. Mas pronto, o seu médico de família....
(PS: numa próxima oportunidade, uma primeira consulta para exemplo.)

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Síndroma Gripal

Aqui vai então um pouco de Serviço Público. Síndroma gripal, ou "gripe", expressão vaga que designa um conjunto de sintomas inespecíficos cuja etiologia se atribui, à partida e por razões epidemiológicas, a um vírus. Influenza, ou outro. Trocado por miudos, é quando uma pessoa, nesta época do ano, inicia queixas de dores musculares difusas, dores de cabeça, pode estar mais ou menos febril, pode ter dores de garganta, e apresenta um mal-estar geral com cansaço e adinamia. Se pertence ao clube das dezenas de milhar de portugueses que vão partilhar estes sintomas a partir de agora, por favor, deixe-se estar em sua casa, descanse, compre Ben-U-Ron ou outro paracetamol qualquer (1g) e vá tomando ao sabor da temperatura (a partir dos 38ºC debaixo do braço, um máximo de 3 vezes por dia), adicione-lhe um anti-inflamatoriozinho não esteróide (por exemplo nimesulida 100mg de 12/12 horas) para espevitar ou andar simplesmente menos prostrado, e deixe passar o tempo.... Sobretudo: NÃO VÁ logo à Urgência mais próxima! Assim tivesse feito uma alma qualquer há uns dias atrás, e talvez eu não tivesse passado o fim-de-semana de molho (já estão agora a perceber a motivação do post...). Em caso de dúvida, ir ao médico assistente, de família. E não à Urgência. E a altura para ter dúvidas (e ir ao médico de família, e não à Urgência) é: -Surgimento de outros sintomas associados aos acima referidos: falta de ar, tosse com expectoração não branca, sintomas intoleráveis APESAR da medicação, vómitos. -Febre persistente (com duração superior a 3-5 dias) 99% dos leitores com gripe este ano, com esta "receita", vão passar um bocado (menos) mau, e rapidamente voltar ao activo (não existem tratamentos específicos, ou "antibióticos", para estas viroses; ou seja, "passam sozinhas"). O restante 1% deve ir ao médico de família (E NÃO à Urgência!). Se tiver mais de 65 anos, profissão exposta (eu sei, mas em casa de ferreiro...) ou doença crónica (sobretudo do foro cardíaco e pulmonar), aproveite e vacine-se. Mas lembre-se, acima de tudo: NÃO VÁ à Urgência do Hospital mais próximo.... PS: já agora, participe no registo Nacional em http://www.gripenet.pt/index.php

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Papeis Trocados

Aproximam-se eleições na Ordem dos Médicos (OM).
A confusão reinante no povo, que faz constar que esse organismo é uma arma corporativista dos médicos, tem razão de ser. E tem razão de ser porque até muitos, quiçã a maior parte, dos meus colegas também se prestam a este tipo de confusão.
E como em qualquer Democracia/órgão democraticamente eleito, as pessoas que votam não sabem necessariamente aquilo que fazem quando votam, levando a que se apresentem a votos pessoas que não correspondem necessariamente àquilo que delas se deveria esperar uma vez eleitas, subvertendo a razão de ser da existência da Entidade.
Por isso é que passamos a vida a dizer que se gasta demasiado em Saúde, elegendo gente de paleio musculado e sentido de responsabilidade plástica, que poupa em Saúde degradando ainda mais os Serviços, gerando ainda mais vozes revoltadas, e assim sucessivamente em círculo vicioso difícil de contrariar.
Reformar, é difícil. Assumir gastos para optimização dos recursos, dos gastos, do controlo de qualidade, é difícil. Muito mais no quadro de uma legislatura, até de duas.
Por isso não se faz. Por isso degrada-se a qualidade em nome da poupança de curto prazo, tanto mais facilmente quanto o sistema actual é tendencialmente gratuito para o utente e tendencialmente não lucrativo para empreendedores privados diversos, que só têm a ganhar com a mudança deste status quo....
Mas voltando à OM, dizia eu que muitos dos meus colegas queixam-se que, tratando-se do órgão representativo da saúde com maior visibilidade nos media, a OM não nos representar devidamente. Não acautelar devidamente os nossos interesses. Ser demasiado branda com o poder circunstancial, ter discurso mole e pouco perceptível.
Numa palavra, não defender a nossa qualidade de vida e a nossa imagem, em sentido lato. Profissionalmente, remuneratoriamente e socialmente.
Quando nós próprios pensamos assim, porque raio havemos de querer fazer crer a alguém que as opiniões emitidas pela OM são imparciais, e sempre com o intuito do bem maior para o doente?
Quando nós próprios somos incapazes de discenir entre o que deve ser um órgão regulador da qualidade da saúde e da Medicina que se exerce por cá, e um qualquer sindicato?
A OM deve controlar os médicos e a qualidade dos cuidados prestados, punir a má prática, denunciar os problemas.
Os nossos interesses devem ser acautelados noutro sítio.
Sob pena de prostituirmos este organismo, descredibilizando-o ainda mais.
Será difícil encontrar, repito, num sistema eleitoral em que os votantes são homens e mulheres com interesses particulares e algum viés de sentido das instituições, alguém que represente devidamente o papel pretendido.
Nas últimas eleições surpreendi-me, porém. Às vezes é assim, a fé nas pessoas, de tão pouca, dá lugar a momentos de êxtase à mínima réstea de engano. Pareceu-me ter vencido a lista menos populista e mais "séria", por assim dizer.
A opção era entre o actual bastonário e o Dr. Boquinhas (por esta altura certamente a gerir uma instituição de saúde qualquer por este país fora...).
Hoje a opção é entre a manutenção do discurso pausado e cuidado, e outro, muito mais populista, que apela ao voto naquele que "defenderá o interesse dos médicos". E não da Medicina.
Tenho alguma apreensão, pois.
Salvaguardando já agora que discordo de muitas das posições do actual bastonário, e desconheço, a bem dizer, a real motivação daquele que me parece ser o "candidato das feiras".
Ou seja, como é também cada vez mais comum nesta Democracia mediatizada, posso estar redondamente enganado.
Mas ficam aqui as minhas "impressões"....

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Paternidades

Confronto-me por vezes, sobretudo desde que comecei a dar os primeiros passos nesta profissão, com a assunção, por uma parte não desprezível da comunidade, que tenho funções inusitadas de paternidade sobre umas quantas almas, apesar do dismatch (assegurado) de ADN.
É assim por exemplo que o diabético chega sorridente à consulta, ainda mais gordo que o costume, com todos os parâmetros a assegurar descontrolo da doença, com inobservância manifesta de todas as recomendações, com o ar travesso do menino que chumbou no teste e nem quer saber.
Ninguém se interroga acerca da pertinência de tal pessoa estar a ocupar um lugar numa consulta onde poderia bem estar outro doente, mais interessado em seguir as indicações que nela são proferidas, e em controlar a sua doença, ao contrário da deste exemplo.
Aliás, alguns, em boa verdade, interrogam-se. Um Diabetologista francês disse, em conferência bem contestada, que no final das suas consultas dava indicação aos seus doentes para voltarem a partir de 3 meses daquela data, desde que pesassem menos dois quilos. Muitos consideraram tais palavras uma profanação da santidade da profissão... mas adiante.
Acima de tudo, questiono-me, e não raras vezes pergunto: qual a finalidade da presença daquela alma ali? As respostas, quando as há, variam dentro de um vasto e paranormal leque.
Também é assim, noutro exemplo, que o bêbado chega violento à Urgência, geralmente porque foi encontrado a fazer desacatos num local qualquer, e, pela alteração do estado de consciência da criatura, alguém julgou ser aquele serviço o indicado para o mesmo "curar" a bebedeira. Ou simplesmente porque alguém bebeu demais e está "sonolento", ou "enjoado" (não se riam, sucede mesmo isso, e com regular frequência...).
Não parece interessar nada que naquele serviço estejam pessoas a desempenharem supostamente bem a sua profissão, e que dispensavam os insultos, as grosserias ou simplesmente a perda de tempo com o energúmeno.
Não parece interessar nada que naquele serviço estejam pessoas a precisarem realmente de cuidados médicos urgentes, secundários a acaso maior que o entornar voluntário de excesso de álcool pelas goelas abaixo.
Não parece interessar nada que o alcoólico patológico seja responsável pelo estado em que se encontra, e que por isso deveria continuar a ser responsável pelo que faz no estado de inconsciência que ele próprio induziu. Poderia ser que no futuro, e proactivamente, ele pensasse duas vezes antes de voltar a ficar num estado semelhante.
O mesmo se aplica a um sem número de situações, em que se assume que a pessoa doente (muitas vezes a começar pela própria) não é responsável pela sua irresponsabilidade, e por isso carece de cuidados permanentes deste manã de bondade e paternalismo que é a figura clássica do médico dos dias que correm.
Julgo que só tínhamos a ganhar se passássemos a tratar pessoas que querem colaborar no seu prórpio tratamento, e na cura ou prevenção da doença.
Sou a favor do controlo de observância aos tratamentos.
Sou a favor da prevenção da aterosclerose em pessoas interessadas em prevenir a aterosclerose, e não no tratamento do "colesterol" de fumadores, e não no controlo da hipertensão de diabéticos indisciplinados.
Sou contra o lema: "mais vale prevenir o que se pode". Porque o lema sai caro, em recursos, em medicamentos e em acessibilidade aos cuidados por parte daqueles que têm uma ideia mais clara do que pretendem fazer com a sua própria saúde.
Ou seja, todos têm o direito, e os profissionais de saúde tem o dever, de informar a população para que se inteire das consequências dos seus comportamentos e status de risco.
Mas tratar, só se deve tratar quem quer.
E quem quer, trata-se.
Quem não quer ou quem não se trata, mesmo quando nem parecer saber que não se quer tratar, não se trata.
Sob pena de se perder, um dia, o direito à maioridade.